A descriminalização do aborto como uma questão de igualdade de gênero e justiça social

 

Maria Beatriz Galli1 e Maria Elvira Vieira de Mello2

 

Sempre que se aborda o tema do aborto, entram em jogo valores morais, religiosos e éticos, heterogêneos e muitas vezes em conflito. Sobretudo no âmbito da sexualidade, tais valores são social, cultural e historicamente construídos e têm impacto direto nas vidas e na saúde das mulheres.

Uma reflexão sobre a atualidade e a eficácia da lei penal vigente3 faz-se necessária diante da realidade do abortamento no país, segundo estatísticas alarmantes, que alçam o aborto para a condição de problema de saúde pública. Estima-se que ocorrem por ano no Brasil 1.054.243 abortamentos. [ADESSE e MONTEIRO]

A discussão sobre o aborto deve pautar-se nos dispositivos constitucionais e no disposto nos tratados e conferências internacionais de direitos humanos das Nações Unidas. A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo de 1994 e a Quarta Conferência Mundial das Mulheres de Beijing, de 1995, por exemplo, afirmaram os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Os documentos internacionais originados nestas conferências, o Programa de Ação do Cairo e a Plataforma de Ação de Beijing, são diretrizes para ações governamentais na área da saúde sexual e reprodutiva. O governo brasileiro, quando assinou tais documentos, passou a assumir um compromisso político de alcançar as metas ali previstas. O parágrafo 106 K da Plataforma de Ação de Beijing, de 1995, dispõe que “os governos devem considerar revisarem as leis que contém medidas punitivas contra mulheres que realizaram abortos ilegais”.

A legislação restritiva em relação ao aborto não reduz sua incidência e é um fator determinante para a prática clandestina de aborto, geralmente realizado em condições de insegurança e insalubridade, com riscos elevados para a saúde e para a vida das mulheres. A cada ano, são registradas cerca de 250.000 internações para o tratamento das complicações de aborto no país. [REDE NACIONAL FEMINISTA DE SAÚDE]

O aborto inseguro no Brasil está entre as principais causas evitáveis de morte materna. O cenário de mortalidade materna por aborto inseguro no Brasil e as complicações de saúde derivadas dessa prática agravam a desigualdade social, econômica e étnico-racial entre as mulheres no acesso à saúde.

Segundo Cook, o problema humano do aborto pode ser caracterizado como uma inabilidade das sociedades de acomodarem as diferenças biológicas e enfrentarem a discriminação social das mulheres baseada nessas diferenças. O princípio da não-discriminação serve à ética da Justiça que requer que os mesmos interesses sejam tratados igualmente sem discriminação. As mulheres têm o direito de serem tratadas de forma igual em relação aos homens, isto é, com o mesmo respeito, dignidade, responsabilidade, e com a mesma capacidade moral de tomar e efetivar decisões nas suas vidas.

É no âmbito de um ideário igualitário de gênero no campo dos direitos sexuais e reprodutivos que o tema do abortamento deve ser percebido. Relações de poder e de gênero desiguais e violentas não podem ser reproduzidas e legitimadas pelo Estado, a partir de uma legislação que criminaliza as mulheres por um procedimento de saúde de que somente elas necessitam. [COOK e HOWARD]

O governo brasileiro tem a obrigação de garantir às mulheres: o direito à igualdade e à não discriminação, o direito à auto-determinação, o direito à segurança pessoal, o direito de não serem objeto de ingerências arbitrárias em sua vida pessoal e familiar, o direito de respeito à sua liberdade de pensamento e consciência, o direito à vida, o direito à integridade física, psíquica e moral, o direito de não ser submetida a nenhum tratamento desumano ou cruel, no âmbito físico ou mental, e o direito à saúde.

A mudança na legislação restritiva do aborto é fundamental para que o governo brasileiro possa cumprir com os compromissos relativos aos direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres. Dentre as iniciativas governamentais nesta direção, merecem destaque as Normas Técnicas do Ministério da Saúde sobre Atenção Humanizada ao Abortamento, de 2005 e sobre a Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, de 1999.

A mudança da lei penal atual terá impacto direto no alcance, em 2015, pelo Brasil, das Metas do Milênio, em relação à saúde materna e à equidade de gênero, colocando o país ao lado de experiências bem sucedidas como a África do Sul e a Romênia.

1 Beatriz Galli é advogada, mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Toronto, consultora de policy e direitos humanos do Ipas Brasil e membro do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM Brasil.

2 Maria Elvira Vieira de Mello é advogada é advogada, pesquisadora da CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação e consultora do Ipas Brasil.

3 O Código Penal brasileiro, em seu artigo 128, prevê duas circunstâncias em que não se pune o aborto praticado por médico: nos casos de risco de vida para a mulher grávida e quando a gravidez é decorrente de um estupro.

 fonte: Ipas Brasil 2008 – Jornal da Associação de Juízes para a Democracia

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