VANESSA RODRIGUES – Diário de Notícias (Lisboa-Portugal)
Tema da liberalização do aborto domina campanha. Dezenas de mulheres morrem enquanto Dilma e Serra discutem
Os dois candidatos às presidenciais brasileiras fizeram do tema do aborto munição na corrida à segunda volta de dia 31, tentando agarrar os votos religiosos, num país onde 80% das pessoas dizem ter uma religião. Mediante tal discussão, as organizações feministas a favor da liberalização do aborto receiam que haja um retrocesso na discussão do problema.
José Serra, do PSDB, disparou contra Dilma Rousseff, do PT, acusando-a de ter “duas caras”. Em 2007, ela dizia-se a favor do aborto, mas agora é contra. O discurso desceu de nível quando a esposa de Serra deixou escapar, durante a campanha, que Dilma queria “matar criancinhas”. E a candidata petista lembrou Serra que, enquanto ministro da Saúde, foi responsável pela “norma técnica de que o aborto deveria ser legalizado”.
A discussão “superficial” desvia atenções da verdadeira questão. “É um problema de saúde pública”, diz ao DN Natália Mori (foto), do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cfemea, em Brasília, líder do movimento pró-aborto no Brasil. Os números da Pesquisa Nacional de Aborto dizem que uma em cada sete mulheres em idade reprodutiva já fez aborto. Esta é a terceira causa de morte materna. Nalguns estados, como Salvador da Baía, a primeira.
Caso recente: uma nordestina de 30 anos morreu num hospital do Rio Grande do Norte em setembro. Estava grávida de um “feto inviável”, provava a ecografia. Não teve autorização judicial para abortar, mesmo com a vida “em risco”. Nesse caso, a legislação brasileira garantia-lhe o direito a abortar. Actualmente, o Código Penal só não criminaliza as mulheres que abortam nesse cenário e em caso de violação. Não é bem assim, avisa Natália. O “preconceito religioso” é “forte objector de consciências, anulando os direitos da mulher, colocando-a em risco”, lembra a também assessora parlamentar. Denuncia ainda que muitos centros de saúde se “negam a prestar apoio às mulheres em caso de aborto”. Quando o fazem, “há situações em que as castigam: não usam anestesia, perfuram o útero”. Prefere parar por aqui na lista de “violação de direitos humanos” e diz que “os hospitais ainda estão muito ligados a religiões com dogmas conservadores”. Mas o estado brasileiro é laico. “Sim, mas as ligações religiosas com a política são fortes e a proliferação das igrejas evangélicas tem deturpado a discussão do aborto.”
No ano passado, Pernambuco foi manchete: menina de nove anos, violada pelo padrasto, grávida de gémeos. A Igreja Católica era contra a interrupção da gravidez. Quando a Justiça autorizou, excomungaram a mãe, a menina e o médico. Há milhares de relatos desses nos dossiers de Natália.
A Cfemea já foi ao Parlamento brasileiro, apelou a deputados, com dados e testemunhos do cenário no país que “sugerem que morrem dezenas de mulheres por dia”. Para a conhecida activista brasileira da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, Valéria Busin, “não há debate sério e medidas práticas sobre o que está a acontecer no Brasil”. Fala em “preconceito” e lóbi. “Os grandes media são de religiosos e a maioria dos políticos teme perder votos e apoios se defenderem o aborto. Enquanto isso as nossas mulheres morrem.”