Um café que produz sonhos

Por Milagros Salazar, da IPS cafe-peru

Putina Punco, Peru, 21/9/2010 – É sábado e as mulheres chegam apressadas, com sacas nas costas, ao centro de armazenamento de cafés especiais deste município do sudeste do Peru. Vêm sozinhas ou acompanhadas de maridos e filhos e todas encontram no grão algo mais além da sobrevivência.

Victoria Viamonte, de 43 anos, carrega sua saca por três horas de caminhada desde sua propriedade. Sua vizinha Inocencia Chipana, de 63 anos, a acompanha com outra de 22,6 quilos de café. Para algumas o carrinho de mão e a mula tornam mais leve a carga, mas a vontade é o motor destas mulheres.

Seus sítios estão dispersos pelo que chamam de beira da Selva de Puno, a região do extremo sudeste que começa a ser conhecida pelo café de Sandia, uma de suas províncias.

Putina Punco está a 12 horas por rodovia ao norte de Puno, a capital do departamento. Nesta área mulheres e homens quéchuas e aymaras produzem, em harmonia com a natureza, o grão orgânico que este ano recebeu o título de melhor café do mundo.

Em abril, a Associação Norte-Americana de Cafés Especiais (SCAA) premiou o produto de um cafeicultor de Putina Punco como um dos nove melhores cafés do mundo e, deles, os degustadores e baristas presentes à feira decidiram que o peruano levasse o Prêmio do Público.

Dias depois, em um concurso de degustação da Associação Europeia de Cafés Especiais, os especialistas certificaram que o grão Tunki de Sandia é um dos melhores em nível mundial.

Sábado é dia de feira. Os pequenos cafeicultores descem as ladeiras dos montes para comprar viveres e entregar o que colheram. Então, o centro de armazenamento da Central de Cooperativas Agrárias Cafeeiras dos Vales de Sandia (Cecovasa) se converte em um enxame de homens e mulheres apressados e suarentos.

“Mulher e homem trabalham por igual no campo”, disse ao TerraViva Teresa Jove, de 45 anos, secretária da Comissão de Desenvolvimento da Mulher da Cecovasa. “Nos apoiamos mutuamente para levar adiante a família”, completou seu marido, Pastor Larico, de 51 anos, antes de contarem o quanto estão orgulhosos de seus três filhos estudarem na universidade.

A Cecovasa é a segunda central cafeeira do país e vende 97% de seus grãos para os Estados Unidos e países europeus.

A origem de seu sucesso está em 1998, quando a central passou a produzir café orgânico na sombra, apoiada pela organização não governamental norte-americana Conservação Internacional para promover o desenvolvimento sustentável no santuário de biodiversidade de Bahuaja Sonene, ao norte do Lago Titicaca, compartilhado com a Bolívia.

A melhora da qualidade do café se combinou com medidas para garantir a sustentabilidade e o comércio justo, e, para impulsionar certificações internacionais, a Cecovasa decidiu promover a igualdade de gênero.

Como resultado, 30% de seus cinco mil cooperados são mulheres.

No entanto, o machismo resiste. “Há agricultores que não se acostumam com uma mulher que diz o que pensa e em voz alta”, sintetizou a religiosa católica Rocío Vinueza, que colabora com as cafeicultoras.

Maria Ramos, de 56 anos, é uma das agricultoras que, como seus grãos, saiu da casca. Presidiu o Comitê de Desenvolvimento da Mulher da Cecovasa e agora é sua vice-presidente. Seus pés de café estão a 1.650 metros de altitude, como os premiados pela SCAA.

A essa altitude, a colheita se estende de maio a setembro, porque a maturação do café é mais lenta devido à umidade. Mas Maria está acostumada ao trabalho duro desde os sete anos, quando seu pai a ensinou a viver nos cafezais na época em que a família migrou das inclementes regiões alto-andinas de Puno.

Dedicou mais de três décadas à produção de café sem fertilizantes, ganhou dois prêmios na região e em dezembro foi uma das vencedoras de um concurso internacional da não governamental Rainforest Alliance (Aliança para Florestas) – que certifica o café produzido de forma sustentável –, competindo com produtores de Brasil, Uganda, Indonésia e Quênia, entre outros.

Na parte alta dos vales de Tambopata e Inambari de Sandia, os cafezais resistem ao avanço dos cultivos de coca, matéria-prima da cocaína. Em Tampobata, onde está Maria, os produtores de coca a cada dia cercam mais os cafezais e em Inambari já ganharam o jogo.

“Dizem que cultivar a folha de coca é mais fácil e se ganha mais, mas sou fiel ao café”, afirmou Maria ao TerraViva certa noite em sua humilde casa, onde criou sozinha quatro filhos, após separar-se, há 20 anos, de um marido que a maltratava.

Maria queixa-se de que os US$ 85 por quintal (46 quilos) que a Central paga como antecipação não bastam. No total, os cafeicultores recebem uma média de US$ 107 por quintal, exceto para os cafés premiados, que podem chegar aos US$ 1 mil.

O sítio de Maria tem dois hectares, dos quais obtém 40 quintais ao ano. Todos são pequenos cafeicultores, e, assim, colhem no máximo 80 quintais anualmente.

Ser cafeicultora não é fácil. Maria acorda às quatro da madrugada para preparar o café e o almoço que levará para o cafezal, para ela e alguns peões que contrata. “Piccha” (mastiga) folhas de coca para que lhe deem “energia e não a deixem fraca” e começa a cortar o mato, colher, retirar a polpa e lavar o café.

Não deita antes das dez da noite, e assim são todos os dias de sua vida, menos quando chove ou é lua cheia, devido à crença de que se trabalhar a plantação seca.

Maria, como outros cafeicultores, seguiu o conselho de plantar árvores de madeira em sua terra para reflorestar os terrenos danificados e manter seus cafés na sombra. O adubo provém dos restos de vegetais da cozinha, do pó de café e do excremento do cuy (roedor andino) e não são usados produtos químicos.

No sítio tudo é reciclado, tudo tem uma ordem, tudo é verde ou vermelho vinho quando os grãos amadurecem. “Precisamos cuidar do meio ambiente pela vida de todos”, disse Maria, convencida disso.

Tal como está convencida de que as mulheres devem lutar juntas para ganhar mais espaço nas cooperativas e, assim, obter sua autonomia econômica, embora “cada passo seja uma batalha”.

“Quando participa, a mulher aumenta seu valor, já não há medo”, afirmou, após recordar como se sentiu no final de 2009, quando foi receber um prêmio e todos falavam em castelhano. Ela decidiu falar em quéchua porque “assim me sentia mais segura, e todos me aplaudiram”, disse, entre risos, rodeada por suas sacas de café, três de seus filhos e alguns netos.

* Este artigo foi publicado originalmente pelo periódico independente TerraViva da IPS com apoio do Unifem e do Dutch MDG3 Fund.

FOTO
Crédito:
Milagros Salazar/IPS
Legenda: Inocencia Chipana mostra seu café.

(IPS/Envolverde)

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