ONG: A crise não governamental

Por Mario Osava, da IPS

Rio de Janeiro, Brasil, 20/9/2010 – Os países latino-americanos, salvo exceções, superaram os efeitos da recessão mundial nascida em 2008, ao mesmo tempo em que abandonaram as políticas neoliberais em sua versão mais fundamentalista. Porém, as que não podem curar suas feridas econômicas são as organizações da sociedade civil.

Muitas dessas associações tendem a desaparecer ao não se ajustar aos novos tempos, nos quais escasseiam as grandes contribuições financeiras externas e internas que receberam nos primeiros anos de reconstrução democrática após sangrentas ditaduras ou autoritarismos, segundo diagnóstico de Cândido Grzybowski, diretor-geral do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

No México, calcula-se que existem 30 mil organizações não governamentais, a maioria religiosa. Uma grande quantidade delas enfrenta graves dificuldades financeiras, e “a crise econômica nacional está por trás do problema”, afirmou Lorena Cortés, coordenadora de pesquisa do Centro Mexicano para a Filantropia.

A proximidade geográfica e o intenso comércio bilateral fazem com que o México sofra de forma mais aguda do que o resto dos latino-americanos a crise econômica que os Estados Unidos enfrentam desde 2008, golpeando governo, empresas e, em conseqüência, também a sociedade civil, disse a especialista à IPS.

Drama semelhante ocorre no Chile. Para Martín Pascual, presidente da Associação Chilena de Organismos Não Governamentais (Acción), isso acontece porque”‘não temos um financiamento público estável” e a cada dia diminui mais a cooperação internacional.

O fato, de as agências de ajuda, especialmente as europeias, terem dado prioridade à África, é apontado pelos consultados como uma causa fundamental do enfraquecimento financeiro das ONGs latino-americanas nos últimos anos, após décadas de crescimento em quantidade e influência política e social.

Uma pesquisa feita pela Diálogo, Direitos e Democracia (D3), uma articulação internacional de grupos de assistência, e pelo brasileiro Instituto Fonte apontou que, de 41 doadores europeus e norte-americanos que deram informações, um já deixou de investir no Brasil e seis pensam em fazê-lo até 2015.

Dados parciais indicam aumento de contribuições internacionais para o Brasil entre 2007 e 2009, mas uma queda de 49,4% na soma prometida para 2010. Algumas das razões alegadas pelos doadores para esta constante diminuição na ajuda são a mudança de prioridades regionais e de estratégia, o alto desenvolvimento brasileiro e o aumento da capacidade de financiamento do país. No entanto, o primeiro motivo mencionado é a crise mundial que nasceu nos Estados Unidos.

A “qualificação de países de renda média”, usada para justificar a retirada do Brasil e do resto da região das prioridades de assistência do mundo rico, é questionada pela Mesa de Articulação de Associações Nacionais e Redes de ONGs da América Latina e do Caribe, encabeçada pela Acción, disse Martín à IPS. “O problema principal da América Latina talvez não seja a pobreza, mas a desigualdade”, refletindo vulnerabilidades que podem provocar “retrocessos” inclusive da democracia, alertou.

A crise do setor agrava-se com a valorização das moedas locais, especialmente no Brasil. A alta do real em relação ao dólar representou perda de 30% nos últimos dez anos para as organizações que recebem doações do exterior, disse Vera Masagão Ribeiro, coordenadora geral da Ação Educativa e diretora da Associação Brasileira de ONGs (Abong).

A ascensão econômica e democrática do Brasil não levou o Estado nem a sociedade toda a criar mecanismos para financiar as ONGs, fato que poderia compensar a redução das doações externas, lamentou Carlos Afonso, fundador do Ibase em 1981.

Para aumentar o financiamento interno falta um “marco regulatório adequado de fundos públicos, que permita transparência” nas doações e no uso dos recursos, bem como incentivos tributários para que os cidadãos brasileiros contribuam, destacou Vera.

Várias denúncias de irregularidades, que desembocaram nos últimos tempos inclusive em investigações parlamentares, geraram uma onda de “desmoralização das ONGs” no Brasil, tornando mais urgente a necessidade de uma legislação que proporcione “segurança jurídica”, tanto para o governo quanto para as organizações que recebem os fundos, acrescentou.

A falta dessa regulamentação levou o governo a “paralisar” projetos, informou, dando como exemplo um da Ação Educativa para estimular a leitura entre jovens e adultos, que espera há dois anos e meio dinheiro oficial do recurso destinado por meio de uma licitação pública convocada sem nenhum questionamento.

Calcula-se que no Brasil há cerca de 330 mil associações sem fins lucrativos, mas este número inclui de escolas e igrejas a clubes e hospitais, além das ONGs que especificamente promovem o poder da sociedade civil, criando e impulsionando políticas públicas.

Embora os ativistas reconheçam que é difícil atender tantos organismos diferentes com interesses específicos, as ONGs desenham um contexto legal que contempla a diversidade, para ser apresentado aos candidatos e às candidatas à Presidência da República nas eleições do mês que vem, disse Vera.

Um sistema tributário que incentive as doações por pessoas, mais do que por empresas, também é necessário, como acontece em alguns países que taxam fortemente as fortunas pessoais, acrescentou. O Chile se prepara para aprovar a lei de Associações e Participação da Cidadania na Gestão Pública, com um capítulo sobre financiamento de organizações sociais, mas é insuficiente para superar a crise e fortalecer o “capital social”, segundo Martín.

Doações consideradas discricionais feitas pelo governo chileno a algumas entidades defensoras dos direitos humanos, de beneficência e culturais, no final da presidência de Michelle Bachelet (2006-2010), provocaram muitas críticas e investigações na Câmara dos Deputados.

As organizações mexicanas mais atingidas pela crise “são as mais novas, de criação recente, porque costumam depender exclusivamente de alguma fonte”, seja governamental ou privada, explicou Lorena. O “nível de institucionalidade das redes e os projetos verdadeiros”, além da identificação de problemas, são fatores importantes para o fortalecimento as organizações sociais, concluiu.

No Brasil, sofrem mais as pequenas ONGs da pobre região Nordeste, segundo Vera. Essa tendência acentua-se pela crescente concentração do apoio externo em poucas e grandes cidades, como registrou o estudo da D3 e do Instituto Fonte.

Na Colômbia, são principalmente razões políticas que levam à discriminação das ONGs na hora de financiá-las, segundo Lilia Solano, diretora do Projeto Justiça e Vida. As defensoras de direitos humanos e as próximas aos movimentos sociais sofrem mais a fuga de doadores, que preferem uma “agenda despolitizada”, afirmou.

Assim, as associações de familiares de presos desaparecidos e os movimentos ligados aos que abandonaram suas casas pela guerra interna, camponeses, indígenas e afrodescendentes, como a própria Justiça e Vida, enfrentam maiores dificuldades para captar recursos, denunciou Lilia.

* Com a contribuição de Daniela Estrada (Santiago) e Emilio Godoy (Cidade do México).


(IPS/Envolverde)

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