SUELI CARNEIRO
1. Raça e direitos humanos no Brasil
É de Joaquim Nabuco a compreensão de que a escravidão marcaria por longo tempo a sociedade brasileira porque ela não teria sido seguida de “medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso interior, de renovação da consciência pública.”[1] Na base dessa contradição perdura uma questão essencial acerca dos direitos humanos: a prevalência de uma concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que outros e por conseqüência a naturalização da desigualdade de direitos. Se alguns estão consolidados no imaginário social como portadores de uma humanidade incompleta torna-se natural que não participem igualitariamente do gozo pleno dos direitos humanos. Uma das heranças da escravidão com a qual contribuiu, posteriormente, o racismo científico do século XIX que dotou de suposta cientificidade a divisão da humanidade em raças estabelecendo hierarquia entre elas e conferindo-lhes estatuto de superioridade ou inferioridade naturais. Dessas idéias decorreram e se reproduzem as conhecidas desigualdades sociais que vem sendo amplamente divulgadas nos últimos anos no Brasil.
No entanto, o pensamento social brasileiro tem longa tradição no estudo da problemática racial e, no entanto, na maior parte de sua história, as perspectivas teóricas que o recortaram respondem, grandemente, pela postergação do reconhecimento da persistência de práticas discriminatórias em nossa sociedade. Nadya Castro Araújo inventaria o percurso pelo qual o pensamento social brasileiro sobre as relações raciais foi se transformando por meio de diferentes óticas pelas quais foi abordado, iniciando-se pelo pessimismo em relação à configuração racial miscigenada da sociedade brasileira, corrente no final do século XIX até as primeiras década do século XX, como atestam pensadores como Sílvio Romero, Paulo Prado, Nina Rodrigues, entre outros, passando pela visão idílica sobre a sua natureza das relações raciais constituídas no período colonial e determinantes na predisposição racialmente democrática da sociedade brasileira, que tem em Gilberto Freyre sua expressão maior e mais duradoura. Comparecem ainda visões que situam a questão racial como reminiscências da escravidão, fadadas a desaparecer tanto mais se distancie no tempo daquela experiência histórica, ou ela é situada como sub-produto de contradições sociais maiores ditadas pela análise materialista dialética que as informava, como coloca Florestan Fernandez. Para Araújo, nessa leitura : “a desigualdade racial era descrita como um epifenômeno da desigualdade de classe. Mesmo ali onde estereótipos e preconceitos contra negros eram expressamente manifestos, eles eram analisados antes como atos verbais que como comportamentos verdadeiramente discriminatórios.”[2] O novo ponto de inflexão nessa reflexão emerge na obra de Carlos Hasenbalg em que pela primeira vez as desigualdades raciais são realçadas a partir de uma perspectiva em que discriminação e racismo são tomados como variáveis independentes e explicativas de tais desigualdades. Essas concepções conformam as duas matrizes teóricas e/ou ideológicas em disputa na sociedade. De um lado o mito da democracia racial ao desracializar a sociedade por meio da apologética da miscigenação presta-se historicamente ao ocultamento das desigualdades raciais. Como afirma o sociólogo Carlos Hasenbalg, esse mito resulta em “uma poderosa construção ideológica, cujo principal efeito tem sido manter as diferenças inter-raciais fora da arena política, criando severos limites às demandas do negro por igualdade racial”.[3] E é essa mistificação que ressurge como veremos adiante para cooperar com a epígrafe acima no que ela adverte para a “repetição do passado no presente” De outro lado a força do pensamento de esquerda que ao privilegiar a perspectiva analítica da luta de classes para a compreensão de nossas contradições sociais tornam secundárias as desigualdades raciais obscurecendo o fato da raça social e culturalmente construída ser determinante na configuração da estrutura de classes em nosso país. Essa inscrição e subordinação da racialidade no interior da luta de classes, iniciada inspirando perspectivas militantes que buscam articular raça e classe como elementos estruturantes das desigualdades sociais no país. Mais recentemente economistas vêm qualificando a magnitude dessas desigualdades ao ponto de, neste momento, podermos afirmar que vivemos num país apartado racialmente. De fato, as disparidades nos Índices de Desenvolvimento Humano encontradas para brancos e negros indicam que o segmento da população brasileira auto-declarado branco apresenta em seus indicadores socioeconômicos (renda, expectativa de vida e educação) padrões de desenvolvimento humano compatíveis com os de países como a Bélgica; que o segmento negro da população brasileira auto-declarado negro (pretos+pardos) apresenta um índice de desenvolvimento humano inferior ao de inúmeros países em desenvolvimento como a África do Sul que, há menos de duas décadas, erradicou o regime de apartheid.
Dentre os principais avanços está a promulgação da lei 10639/03, em 09 de janeiro de 2003, que alterou a lei 9394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e passou a instituir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira”. Um marco no sentido de introduzir na educação brasileira uma forma de valorizar a participação dos afro-brasileiros na história do país, bem como de resgatar os valores culturais africanos. Além da instituição da temática no currículo, o decreto também inclui no calendário escolar, conforme o artigo 79-B, o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. Porém, o presidente Lula vetou artigo da lei segundo o qual as disciplinas história do Brasil e educação artística deveriam dedicar pelo menos 10% do seu conteúdo programático à temática negra. Esse artigo foi considerado inconstitucional por não observar os valores sociais e culturais das diversas regiões do país. Também foi vetado artigo que determinava que os cursos de capacitação de professores contassem com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, de universidades e de outras instituições de pesquisa pertinente à matéria. Esse artigo foi considerado ilegal por incluir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional assunto estranho a essa lei, que em nenhum dos seus artigos faz menção a cursos de capacitação de professores. Segundo o Ministério da Educação, os parâmetros curriculares nacionais do ensino fundamental e médio já orientam que a diversidade cultural, étnica e religiosa esteja nos currículos. No entanto os avanços na implantação dessa lei vem dependendo dos mesmos atores de sempre, os movimentos sociais como é o caso da representação do IARA e outras entidades ao Ministério Público Federal para a implementação da Lei 10.639 em todo o País. Uma das vitórias dessa iniciativa é o fato do juiz da infância Guaraci Viana, do Rio de Janeiro ter intimado “o MEC e demais órgãos competentes da capital a cumprirem já a lei federal que manda ensinar história africana e cultura afro-brasileira nos colégios.Viana acatou ação movida por entidades do movimento negro, liderada pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA).” Na área da saúde celebra-se fato do Conselho Nacional de Saúde aprovou, por unanimidade, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Tal decisão representa o reconhecimento pelo governo brasileiro das iniqüidades raciais presentes no acesso à saúde que expõem desproporcionalmente pessoas negras à mortalidade e à morbidade por causas preveníveis e evitáveis. Dentre elas destacam-se a mortalidade infantil de crianças até um ano de idade; o descaso com a prevenção e atenção em relação às doenças prevalentes entre a população negra como diabetes, hipertensão arterial ou anemia falciforme, miomatoses; os níveis superiores de mortalidade materna entre mulheres negras resultado das diferenças percebidas, pelos estudiosos do tema, na assistência na gravidez, parto e puerperio sendo essas diferenças em desfavor das mulheres negras. Esse conjunto de fatores está enquadrado pelos especialistas da área de saúde no conceito de racismo institucional que se refere à “incapacidade coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado ou profissional às pessoas devido à sua cor, cultura ou origem racial/étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação por meio de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que prejudicam determinados grupos raciais/étnicos, sejam eles minorias ou não” (CRE/UK, 1999, p. 2 apud Werneck, 2004). Como no caso da lei 10639/03 a implementação do Plano, onde ocorre, deve-se a ação de sensibilização dos profissionais de saúde pelas organizações dos movimentos sociais em especial, s de mulheres negras. O reconhecimento do racismo institucional como uma questão estratégica do combate ao racismo e da reprodução das desigualdades raciais pelo governo tem sua expressão também no Projeto Combate ao Racismo Institucional (DFID/PNUD) – parceria entre Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimento Internacional (DFID) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) elaboraram projeto de cooperação com prefeituras municipais da região Nordeste e organizações da sociedade civil. Através do Programa de Combate ao Racismo Institucional, as instituições públicas poderiam se capacitar para superar os entraves ideológicos, técnicos e de natureza administrativa, que dificultam o enfrentamento dos efeitos combinados do racismo e do sexismo, poderosos obstáculos ao acesso ao desenvolvimento. Infelizmente esse convênio acaba de ser encerrado. Porém outros programas governamentais de significativa importância para a população negra até o momento fracassaram tais como o Primeiro Emprego que previa o incentivo às empresas como um mecanismo de combate à discriminação de jovens pertencendo a grupos discriminados como negros, mulheres e deficientes. Porém é na área de segurança pública onde, sobretudo os jovens negros encontram-se exposto a uma matança que se assemelha ao genocídio onde há absoluta inação da parte do governo. Percebe-se por fim o recuo do governo em relação aos projetos de lei que prevê a reserva de cotas para negros, índios e alunos oriundos de escolas públicas e ao Estatuto da Igualdade Racial, que desencadearam uma ofensiva conservadora jamais vista na sociedade brasileira. 3. A reação conservadora
“Não obstante, o dilema social representado pelo negro liga-se à violência dos que cultivaram a repetição do passado no presente.” (Florestan Fernandes in Luta de raças e classes – Teoria e Debates n.º 2 (março/1988) A possibilidade de aprovação de dispositivos legais que institucionalizariam a política de cotas e de promoção da igualdade racial motivou o manifesto assinado por parcela da intelligensia nacional endereçado ao Congresso Nacional, deputados e senadores, “pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade Racial). Alegam que o Estatuto e as cotas raciais rompem com o princípio da igualdade e ameaçam a República e a democracia. Como vimos apontando em diferentes artigos e aqui cabe novamente reiterar, as políticas de ação afirmativas têm sido implementados numa diversidade enorme de países. Elas têm sido praticadas para atender a diferentes segmentos da população que por razões históricas, culturais ou de racismo e discriminação forma prejudicados em sua inserção social e participação igualitário no desenvolvimento desses países. Além dos EUA, temos exemplos na Inglaterra, no Canadá (indígenas, mulheres e negros), Índia (desde a constituição de 1948 previu-se medidas especiais de promoção dos dalits, os intocáveis), Colômbia (indígenas) Alemanha, Austrália, Nova Zelândia e Malásia (o grupo étnico majoritário, buniputra), União Soviética (4% das vagas da Universidade de Moscou para habitantes da Sibéria), Israel (falashas, judeus de origem etíope) Alemanha (mulheres) Nigéria (mulheres), Sri Lanka , África do Sul, Austrália, Nova Zelândia entre outros), Noruega e Bélgica (imigrantes) e Líbano (participação política das diferentes seitas religiosas), China e Peru.
Obrigado Sueli Carneiro pela aula de cidadania e por nos auxiliar a enxergar o possível para chegarmos na modernidade!