Por Mario Osava, da IPS
Rio de Janeiro, Brasil, 16/8/2010 – É preciso passar de uma economia masculina, de competição e ganha-perde, para uma economia feminina, de colaboração e de ganha-ganha, disse em entrevista à IPS a escritora Rose Marie Muraro, declarada em 2005, por lei especial, Patrona do Feminismo Brasileiro.
Autora de 35 livros, “apenas 20 grandes”, Muraro se mantém produtiva e lutadora aos 79 anos e anuncia nova obra para 2011, com propostas para uma economia de cooperação e solidariedade, que resgate valores como a troca e incorpore uma perspectiva de gênero ao desenvolvimento. Outros 1.600 títulos foram publicados sob sua direção nas editoras Vozes e A Rosa dos Tempos, dedicada a assuntos de gênero.
Nasceu quase cega e somente aos 66 anos conseguiu boa visão graças a uma cirurgia. Mas esse problema não a impediu de estudar física e economia, ter cinco filhos em um casamento de 23 anos, impulsionar o feminismo brasileiro e opor-se à ditadura militar (1964-1985). Tampouco foi obstáculo para seu papel como difusora da Teologia da Libertação por intermédio da Vozes, a editora católica que codirigiu com o teólogo Leonardo Boff.
IPS: Como explica as mulheres já terem maior escolaridade do que os homens mas continuarem com salários inferiores e sofrendo mais o desemprego e a informalidade?
RMM: Isso está melhorando, as mulheres já ganham cerca de 90% do que recebem os homens. Um grande obstáculo é a baixa representação feminina nos legislativos da nação, dos Estados e municípios. As mulheres tendem a votar mais pelos homens. A candidata presidencial Dilma Rousseff tem mais apoios masculinos do que femininos, segundo as pesquisas. É preciso uma campanha pelo voto feminino.
IPS: Por que as mulheres não fazem prevalecer sua maioria absoluta como eleitorado?
RMM: Devido ao preconceito que elas mesmas têm de que a mulher é inferior. Ainda temos uma maioria de conservadoras entre as mulheres, que defendem o patriarcado e consideram o homem mais preparado para governar. Além disso, como parece “natural” os homens terem mais possibilidade de serem eleitos, os partidos dão a eles maiores recursos. Assim, as candidatas ficam com menos propaganda e menos dinheiro em suas campanhas eleitorais. Mas já houve uma revolução desde a pílula anticoncepcional. Há 40 anos, tínhamos apenas 5% de parlamentares mulheres, hoje é o dobro. O Brasil continua com um dos menores índices, distantes dos 50% dos países do norte europeu, mas estamos melhorando pelo trabalho feminista. É interessante que para as eleições de outubro tenhamos duas boas candidatas à Presidência, com Dilma Rousseff em melhores condições de vencer por ter o apoio de um grande homem, que reduziu a pobreza no país, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (A outra candidata é Marina Silva, do Partido Verde, ex-ministra do Meio Ambiente)
IPS: No Brasil está estabelecida a cota feminina de 30% para candidaturas de cada partido. Isto não ajuda para uma participação maior?
RMM: Muito pouco, porque os partidos não cumprem e falta autoestima às mulheres que, ao se julgarem inferiores, não se candidatam. Além disso, tem a questão das candidatas “laranjas”, filhas, esposas ou irmãs de políticos conhecidos, que vencem. É uma “participação perversa”.
IPS: Não é contraditório com a superioridade das mulheres em anos de estudo e sua maioria nos cursos secundário e universitário?
RMM: É que só a escolaridade não basta, é preciso uma educação específica de gênero. Que não se separe brincadeiras para meninos e meninas, que elas e eles pratiquem os mesmos esportes, meninos com bonecas, meninas no futebol. É preciso modificar o ensino machista, que é competitivo, para que seja de colaboração.
IPS; Mas o ensino está em mãos femininas, as mulheres dominam a docência.
RMM: Fisicamente, mas não mentalmente. É necessário formar as professoras para a educação de gênero. É preciso mudar os livros. O vocabulário está impregnado de machismo, a gramática está voltada ao homem e pode-se imaginar como estão as mentes das pessoas. A tarefa é gigantesca, demanda gerações, porque as mudanças culturais são mais profundas e, por fim, mais lentas. Mas estão em marcha. Há 30 anos eu lutava solitária, sufocada. Agora a sociedade me estende tapete de flores. Houve avanços, vitórias não, porque essa palavra tem dentro de si a competitividade machista.
IPS: A senhora vincula a igualdade de gênero a uma mudança radical na economia. Por que?
RMM: Porque a economia ainda é masculina, o que significa dominação e competição, a matemática do ganha-perde, a maximização dos lucros. A visão da mulher é oposta, colaborativa, desenvolve a economia solidária, o ganha-ganha, colocando a pessoa em primeiro lugar, não o lucro.
IPS: Como se manifesta concretamente essa economia feminina?
RMM: No microcrédito, por exemplo, que é para pobres e quase todo destinado a mulheres, sem insolvências. Nas experiências de economia solidária com moedas complementares. Em Fortaleza, com a moeda complementar se conseguiu transformar uma primeira favela insalubre em um bairro saneado, de classe média. A economia do cuidado (crianças, idosos, doentes) é nitidamente feminina e pouco valorizada no mercado. As mulheres somam 90% das cuidadoras, segundo as Nações Unidas. A mulher no poder muda a natureza do dinheiro. É o que explico no livro “Reinventando o capital-dinheiro”, que devo lançar no primeiro semestre de 2011.
IPS: A senhora também escreveu “Diálogo para o futuro”, junto com a economista Hazel Henderson, onde propõem a substituição de conceitos e medições como o PIB.
RMM: O PIB conta como riqueza o dinheiro fictício e recursos que se perdem, por exemplo, o petróleo exportado e que não é renovável. Teria que se descontar a contaminação, o desmatamento, a degradação da terra. A destruição da espécie humana é provocada pelo homem que promoveu o superconsumo e não quer pagar pela contaminação. O julgamento da humanidade vem pelo meio ambiente, que acaba com a espécie quando se manifesta, é o que venho alertando há 40 anos.
IPS: O feminismo supõe também outra ciência tecnológica?
RMM: Sim, a mulher tem outra forma de fazer ciência, colaborativa, de ciência para a vida, com distribuição para todos, nunca patentearia células como Craig Venter (o biólogo norte-americano que encabeçou o projeto privado do genoma humano). Por que? Porque carrega o feto, alimenta o bebê, cuida de todos. Outros dados das Nações Unidas indicam que são femininos 80% da militância ecológica, 90% da militância contra a guerra e 70% da militância contra a pobreza. Envolverde/IPS
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Crédito: Cortesia Instituto Cultural Rose Marie Muraro
Legenda: Rose Marie Muraro, patrona do feminismo brasileiro.
(IPS/Envolverde)