A persistência da banalização da violência de gênero no Brasil

Welliton Caixeta Maciel*

Nas últimas semanas, os noticiários foram tomados pelo “caso Bruno”, protagonizado pelo ex-goleiro do Flamengo acusado de encomendar o assassinato de sua ex-namorada Eliza Samúdio. Uma monstruosa história de crueldade, espetacularização do crime e desumanização da morte, envolvendo sexo, sangue, dinheiro e poder. Saímos do cenário global das notícias sobre a Copa do Mundo e voltamos ao cenário do universo futebolístico nacional, porém, com outro enfoque, bastante cruel, por sinal.

 

Da violência do esporte à violência que transcende o ethos esportivo, perpassando as relações sociais em suas várias formas (violentas) de sociabilidade e em suas representações sociais, do deslocamento simbólico do eixo público/privado na esfera das relações interpessoais à (talvez, pretensiosa) confusão dos estereótipos de “agressor” e “vítima”, situados no contexto de uma sociedade ainda dominada pelos ranços do patriarcado.

Sem a menor sombra de dúvidas, o “caso Bruno” se tornou mais um caso emblemático acerca da manifestação do fenômeno social da violência contra a mulher no Brasil. Se ele se tornará, também, mais um caso da ineficiência do aparelho de justiça estatal, aguardamos para saber. O fato é que Eliza está morta. Antes disso, foi ameaçada e torturada. Após ser esquartejada por seus algozes, partes de seu corpo foram atirados a cães famintos da raça rottweiller.

Segundo denúncia oferecida pelo Ministério Público ao Tribunal do Júri de Contagem/MG, o assassinato foi “o ápice de uma seqüência de eventos que se iniciaram cerca de um ano antes” de sua consumação. “Eliza foi morta porque suplicava a Bruno, pai de seu bebê, que reconhecesse a paternidade da criança e pagasse os alimentos devidos. Bruno, insatisfeito com isso, resolveu engendrar o plano diabólico. Uniu-se aos outros denunciados no planejamento e na execução do homicídio. Todos sabiam que Eliza seria morta e que seria dado um sumiço em seu corpo. O torpe motivo do crime era o desejo de Bruno de retaliar Eliza, em face de sua postura de mãe obstinada na defesa dos direitos do filho. (…) constantemente subjugada por múltiplos algozes, levada ao cativeiro e lá mantida por vários dias até a data de sua morte, não teve a mínima chance de defesa”.

Apesar das retratações nos depoimentos das testemunhas na fase investigatória, dos recorrentes questionamentos quanto à legitimidade das provas coletadas (sobretudo, das marcas de sangue encontradas no carro e no sítio de Bruno), da performática tranqüilidade do principal denunciado em suas aparições em público (todas muito bem orientadas por seu advogado), Bruno e seus comparsas foram denunciados pela prática dos crimes de homicídio triplamente qualificado, seqüestro e cárcere privado na forma qualificada, ocultação de cadáver e corrupção de menor majorada, conforme a legislação penal brasileira vigente, observadas as peculiaridades dos crimes cometidos por cada um.

É de se lamentar, contudo, a relutância dos órgãos policiais e da justiça em fazer processar tamanha barbaridade diante a não mais evidente e concreta presença do corpo da vítima, apenas baseando-se em provas indiretas do crime. Lembremos que o mesmo aconteceu com o caso do jornalista Tim Lopes, assassinado por traficantes, no Rio de Janeiro, em 2002. Razão àqueles e àquelas que se indignam diante à obcecada necessidade construída de ser preciso que a polícia identifique o assassino e encontre o corpo ou seus vestígios no suposto local da prática do ato criminoso para que a tese de homicídio se sustente.

Tal prática social se deve graças à lógica inquisitorial do inquérito policial, ainda majoritária no Brasil. A esta mesma razão aos depoimentos das testemunhas é atribuído peso secundário no contexto do sistema de persecução criminal. Maior peso, contudo, são a eles conferidos na formação da culpa e na conseqüente mitigação da aplicação do princípio do contraditório, conforme constatado em recente pesquisa nacional sobre “O Inquérito Policial no Brasil”, coordenada pelo NECVU/UFRJ, da qual tive a honra de participar.

Infelizmente, evidencia-se, mais uma vez, a cartorialização e a conseqüente precarização e redução da eficácia do trabalho policial. O culto excessivo aos procedimentos burocráticos são reflexos das baixas taxas de esclarecimentos criminais, servindo como subterfúgio ao cansativo e abarrotado “pingue-pongue” de cargas e trâmites entre Polícia, Ministério Público e Justiça, para requisição/realização de diligências.

Enquanto isso, a cada duas horas uma mulher é assassinada no Brasil, sendo a maioria vítima de ex-namorados, maridos ou companheiros, segundo o “Mapa da Violência 2010”, estudo feito pelo Instituto Sangari, com base no Sistema Único de Saúde. Não obstante, continuamos na luta pela judicialização das relações interpessoais, pelo desvelamento do patriarcado nas relações sociais, inclusive nas práticas dos “operadores” do sistema de justiça criminal. Neste particular, a Lei “Maria da Penha” tornou-se a resposta mais eficiente encontrada pelo Estado brasileiro visando o rompimento e a busca da superação da violência de gênero neste país.

No contexto do “caso Eliza” (compreendidas aqui as mudanças nas conjunturas simbólicas das interpretações), à mídia, enquanto (re)produtora de representações sociais, não cabe julgar e condenar os sujeitos envolvidos, senão informar criticamente acerca dos fatos, de forma a não permitir que a persistência pela banalização da violência de gênero traduza-se, mais uma vez, em impunidade e na ratificação dos padrões culturais de opressão.

* Welliton Caixeta Maciel é cientista social e pesquisador do Núcleo de Estudossobre Violência e Segurança, da Universidade de Brasília.

artigo originalmente publicado no Jornal O POPULAR, Coluna

Opinião, nesta data (15.08.2010)

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