Sulamita Esteliam
Espantoso é que ainda haja quem defenda o agressor. Eliza, cujo corpo ainda não foi encontrado, ganhou pecha de “Maria Chuteira”. Maristela foi taxada de adúltera, e o marido já era ex, há dois anos. São inesquecíveis as palavras do sogro, criminalista de renome: “se não matasse, não comia na minha mesa”.
No aniversário de quatro anos da sanção da Lei Maria da Penha, dia 06 de agosto, Pernambuco e sua capital, Recife, registram queda nos índices de violência doméstica letal contra a mulher. São ligeiros os recuos, mas, num país onde se mata uma mulher a cada duas horas, segundo pesquisa recentemente divulgada pelo Instituto Sangari, de Brasília, qualquer redução é avanço. Afinal, é de vidas que se trata. Nesta contagem, o “Leão do Norte” figura em 5º lugar, com taxa de 6,5 em 100 mil e a capital pernambucana em 40º, com 10,6 dentre os municípios com mais de 10 mil mulheres. Pelo critério, Alto Alegre, em Roraima, é o mais violento, com índice de 22,0. A média nacional é de 4,2. O levantamento foi realizado com base nos dados do SIM – Sistema de Informações de Mortalidade, do Ministério da Saúde. De 2003 a 2007, foram assassinadas, em média, 4 mil mulheres por ano, num total de 19.440 no quinquênio. Agregados os cinco anos anteriores, a matança atinge 41.532 mulheres.
Como se vê, os números do recorte de gênero feminino no Mapa da Violência 2010, do Instituto Sangari, são assustadores. Apontam o Espírito Santo e Vitória como estado e capital mais violentos para com a mulher, no período 2003/2007. A média de homicídios femininos naquelas hostes é de, respectivamente, 10,3 e 13,3 em 100 mil. Quando a classificação leva em conta as capitais, Recife, está na segunda posição. Em terceiro, vem Belo Horizonte, a cidade cordial, com 7,8. Aracaju, João Pessoa, Rio de Janeiro e Porto Alegre ocupam as posições subsequentes, com o mesmo índice: 5,4 em 100 mil. Brasília está em 9º lugar, com 4,9 e São Paulo vem em 10º, com 4,7. O cálculo, obviamente, é proporcional à população-alvo.
O mapa falha, todavia, quando não apresenta o quesito raça, nos homicídios femininos, como faz com as taxas globais e de assassinatos dentre os jovens. Se o fizesse, muito provavelmente, concluiria que boa parte das vítimas é negra, além de pobre, e suas mortes não viram manchetes de jornal.
Cerca de 40% das mulheres assassinadas estão na faixa etária de 18 a 30 anos. Jovens como a paranaense Eliza Samúdio, que segundo apurou a polícia, foi sequestrada no Rio de Janeiro, levada para Minas Gerais, onde teria sido estrangulada, esquartejada e seus restos jogados aos cães, num sítio nas proximidades de Beagá. O caso ganhou notoriedade, não pela barbaridade do crime, ou não só. Mas, principalmente, porque o mandante teria sido o goleiro Bruno, do Flamengo, com quem Eliza teve um caso – e que seria o pai do filho ainda bebê, a quem ele se recusa a dar o nome. Bastava um simples exame de DNA para dirimir dúvidas e querelas.
As crianças, destaque-se, assistem às agressões. É o que dizem 68% dos casos relatados ao 180, número do disque-denúncia da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Não raro, 15%, são também alvos da violência. A exemplo do casal de filhos de Maristela Just, a pernambucana de 25 anos assassinada com cinco tiros pelo marido, no bairro de Candeias, Jaboatão dos Guararapes. Sobrou bala e sequelas – físicas e psicológicas – para a menina, de cinco anos, e o menino, de dois anos e meio. Adultos, ambos foram testemunhas-chave no julgamento do pai, 21 anos depois do crime, em junho último.
Bruno e alguns de seus cúmplices estão presos, preventivamente, enquanto aguardam julgamento. José Ramos Lopes Neto foi condenado a mais de 90 anos de cadeia, por homicídio qualificado, mais tentativa de parricídio. À revelia, pois nem o assassino confesso nem o advogado compareceram à sessão, pela segunda vez, em menos de dois meses. Continua foragido. A diferença entre os dois casos não está nas circunstâncias. Nem tampouco se deve ao tempo decorrido entre um e outro episódio. A diferença é a Lei Maria da Penha. É ela que dá instrumentos para enfrentar a impunidade, ao prever rigor no trato desse tipo de violência, mesmo quando não desagua em morte.
Faltam estudos que tracem o perfil do agressor. Sabe-se, contudo, que assim como o homem que reprime, oprime e/ou espanca, o assassino é, quase sempre, velho conhecido: marido, namorado, ex-companheiro ou parente; por isso, violência doméstica. Em geral, o homem rejeitado, ou amado, por ela ou de quem teve a desventura de parir descendente. O motivo pode ser nenhum – se é que possa haver razão ou cultura que justifique a desumanidade. Seguramente envolve machismo, baixa autoestima, sentimento de posse ou misogenia – desprezo pelas mulheres. Travestidos em macheza e arroubos de valentia. A palavra talvez seja desamor. Covardia, com certeza.
Espantoso é que ainda haja quem defenda o agressor. Eliza, cujo corpo ainda não foi encontrado, ganhou pecha de “Maria Chuteira”. Maristela foi taxada de adúltera, e o marido já era ex, há dois anos. São inesquecíveis as palavras do sogro, avô dos filhos que ela gerou com o homem que se transformou em seu inimigo fatal. Criminalista de renome, às vésperas do júri popular – que seu conhecimento das artimanhas jurídicas conseguiu protelar por duas décadas -, não se furtou em pregar, nas páginas dos jornais e ondas de rádios: “Se não matasse, não comia na minha mesa”. A OAB-PE o está processando por apologia ao crime.
Talvez o tal senhor não tenha atentado para o sinal dos tempos. De fato, homens com pensamento semelhante continuam na contramão. E os dados do Mapa da Violência 2010, são prova disso. O mesmo Pernambuco que se esforça para fazer valer seu Pacto pela Vida, programa do governo estadual para redução da violência, ainda está muito longe de poder comemorar vitórias, tanto no geral quanto no particular. No que diz respeito ao sexo feminino, que ora é a nossa pauta, a situação continua grave, sim: até o dia 4 de julho, por exemplo – as estatísticas oficiais não acompanham ritmo e frequência das mortes – 121 mulheres e meninas haviam sido assassinadas.
Entretanto, o Departamento de Polícia da Mulher, da Secretaria de Defesa Social no estado, garante que os números se mantém decrescentes, sobretudo no último ano. Um dos motivos, reconhece, é a força da Lei Maria da Penha, que obrigou o Estado a se estruturar para tirá-la do papel. O outro é o vigor dos movimentos de mulheres, um dos mais organizados e criativos do país. Passeatas e apitaços para cobrar providências das autoridades e sacudir a leniência da sociedade, fazem parte da paisagem da “Veneza Brasileira”. Unem militantes feministas e políticas, intelectuais e mulheres de terreiro, artistas e lideranças populares. As performances das Loucas da Pedra Lilás, por exemplo, grupo de teatro de rua que denuncia a violência sexista no Recife, agregam arte à repercussão do drama.
No concreto, a busca de mais agilidade no atendimento começa na descentralização e interiorização das delegacias e centros de referências de mulheres. Já são sete o número de Delegacias de Polícia de Prevenção e Repressão de Crimes contra a Mulher – Recife, Jaboatão dos Guararapes, Paulista e Ipojuca, na área metropolitana; Caruaru, no Agreste, Petrolina e Surubim, no Sertão. Há previsão de mais seis em diferentes regiões do estado. E há uma Delegacia de Polícia de Plantão para Crimes contra
a Mulher, que funciona com quatro turmas, em regime de 24 horas, na capital.
O trabalho ganha efetividade na adoção de medidas protetivas para garantir a integridade física e moral das vítimas potenciais, asseguram os responsáveis. O afastamento imediato da mulher de sua casa, quando ela sofre violência no seu convívio familiar é uma das práticas-padrão. A outra é o encaminhamento do pedido ao Judiciário, em 48 horas, impreterivelmente. Segundo a delegada Lenise Valentim, gestora do Departamento de Polícia da Mulher foram expedidas mais de 4 mil medidas protetivas nos últimos quatro anos, e efetuadas algumas prisões de agressores que as desrespeitaram.
O esforço no combate à violência, explica Lenise Valentim, passa pela capacitação dos agentes da lei para receber e atender bem a mulher agredida, e tomar as providências necessárias para se evitar o mal maior. O foco, entretanto, é a prevenção, através de campanhas educativas de mulheres e homens, num trabalho conjunto de governo e sociedade, de todos e de cada um. Nas palavras da delegada Valentim: “É preciso conversar com o homem, porque é ele quem bate, é ele quem mata. Convocar os homens a serem machos de verdade”.
(*) Sulamita Esteliam é jornalista e escritora. Autora dos livros Estação Ferrugem, romance-reportagem que resgata a história da região operária de Belo Horizonte-Contagem, Vozes, 1998; Em Nome da Filha – A História de Mônica e Gercina, sobre violência contra mulher em Pernambuco; e o infantil Para que Serve Um Irmão, os dois últimos ainda inéditos. Apresenta, nas manhãs de sábado, o programa Violência Zero pela Rádio Olinda AM – 1030. sulamitaesteliam@hotmail.com//esteliam@oi.com.br
fonte: Carta Maior