Navi Pillay*
Dayaram queria segurar seu bebê em seus braços. Em vez disso, ele lamentou as mortes de sua mulher e filho. Eles morreram de complicações durante o parto porque a esposa de Dayaram, Bushba, teve que andar 50 quilômetros desde a sua remota vila no norte da Índia até o hospital mais próximo. O destino de Bushba não é exceção.
Salvar as vidas de muitas mulheres como Bushba é um dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) que líderes mundiais aprovaram há dez anos. Eles se encontrarão novamente em setembro para avaliar o progresso feito para alcançar esses Objetivos, que foram criados a fim de reduzir a pobreza, fome e doenças, além de promover igualdade entre gêneros, saúde, educação, sustentabilidade ambiental e parcerias globais até 2015. A implementação completa desses Objetivos é vital, assim como é o combate a violações de direitos humanos, que quase invariavelmente têm origem na pobreza e exclusão. A vida das pessoas mais pobres e vulneráveis do mundo está em jogo.
De acordo com estimativas atuais do Banco Mundial, quase 1,5 bilhão de pessoas vivem em extrema pobreza. A recente crise econômica, financeira e de alimentos empurrará mais 64 milhões de pessoas para a pobreza extrema até o fim do ano. Mais de um bilhão de pessoas sofre de desnutrição. Na África subsaariana e em partes da Ásia, a pobreza permanece teimosamente alta; o número de pessoas vivendo com menos de um dólar por dia aumentou 92 milhões na África subsaariana e 8 milhões na Ásia ocidental entre 1990 e 2005.
Em muitos países, centenas de mulheres rurais grávidas como Bushba morrem desnecessariamente por causa da falta de tratamento médico. Saúde materna é uma questão de direitos humanos. De fato, está implícito nos Objetivos que todas as pessoas devem ter acesso a seus direitos humanos básicos, incluindo o direito a alimentos, a abrigo, a educação, a receberem soluções quando seus direitos forem violados, e a participar plenamente na vida pública. A inter-relação entre liberdade do desejo e liberdade do medo é explicitada na Carta das Nações Unidas e em leis internacionais de direitos humanos. É necessário que isso seja considerado como um princípio central das discussões dos líderes mundiais sobre os Objetivos.
Tais discussões são aguardadas com uma mistura de grandes expectativas e apreensão ainda maior. Isso ocorre porque mudanças positivas e concretas ainda iludem milhões. Promessas foram feitas e foram quebradas, condenando multidões a uma vida de pobreza, negligência e abuso. Não podemos decepcionar aqueles que vivem nas margens de suas sociedades – muito menos aqueles vivendo às margens da comunidade global. A privação de seus direitos civis pode ter um custo mais alto do que investir recursos e vontade política para seu fortalecimento.
E fortalecimento não pode ser alcançado se políticas de desenvolvimento são implementadas no vácuo de direitos humanos. Mesmo assim, por muito tempo, governos consideraram direitos humanos e desenvolvimento como dois assuntos totalmente separados, cada um devendo ser tratado independentemente e de acordo com uma ordem diferente de prioridade. Desenvolvimento econômico tem sido a preocupação primordial, exacerbando a lacuna entre ricos e pobres. Mas em combinação com os direitos humanos, estratégias de crescimento econômico podem ser ferramentas poderosas para nos ajudar a compreender a visão da Carta das Nações Unidas de um mundo mais igualitário, seguro e justo.
Princípios de direitos humanos como igualdade, participação, responsabilidade e aplicação da lei são instrumentos para que o desenvolvimento tenha raízes firmes, seja equitativo e sustentável. Liberdade e participação, e todos os outros direitos civis e políticos, apoiam a riqueza em comum das sociedades. Por sua vez, direitos sociais e econômicos são decisivos para fortalecer o governo, assim como para criar políticas de desenvolvimento efetivas. E a igualdade entre gêneros é o maior multiplicador de desenvolvimento, conhecido por funcionar em qualquer lugar.
Estou convencida que Bushba e muitas das quase 500 mil mulheres que morrem desnecessariamente todo ano durante a gravidez e o parto viveriam e até prosperariam se, junto com tratamento médico, elas tivessem tido a chance de se educarem, de ter acesso à informação e de participar nas decisões sobre sua gestação e como dar luz a seus filhos.
Desenvolvimento não pode ser um projeto imposto às pessoas, e sim uma jornada em comum liderada pelas próprias pessoas. Por isso uma abordagem baseada nos direitos humanos para o desenvolvimento é essencial: coloca as pessoas no controle de suas vidas, assim como põe as mulheres no controle de seus próprios corpos e destinos. Quando os líderes se reunirem em Nova York em setembro para decidir sobre o futuro das Bushbas deste mundo, eu os convidarei a se juntarem a mim em um esforço para transformar os direitos humanos na base do desenvolvimento. É muito tarde para Bushba e para muitas pessoas que ainda podem ser salvas, o tempo está se esgotando.
*Navi Pillay é alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos. Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico, caderno “Opinião”, no dia 06/08/2010.
(Envolverde/UNIC Rio – Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil)