Por Adriana Jacob Carneiro – Observatório da Imprensa em 16/3/2010
A origem histórica do Dia Internacional da Mulher, data que possui significativa importância na luta pelos direitos das mulheres, vem sendo sistematicamente distorcida no Brasil. A cada ano, a cobertura midiática feita no país confirma o quanto a falta de uma apuração aprofundada tem o poder de reproduzir e fortalecer fatos inverídicos. Em grande parte desses espaços, o 8 de março é associado a um incêndio que teria acontecido em 1857 em Nova York e provocado a morte de 129 trabalhadoras da indústria têxtil. De acordo com essa versão, elas teriam sido queimadas vivas como punição por um protesto por melhores condições de trabalho.
Entretanto, o protesto só ocorreu 51 anos depois, em 1908, e sem chamas. Já o incêndio aconteceu em 1911, de forma bem diferente da narrada pelos meios de comunicação. O fogo teve início não no dia 8, mas em 25 de março. Como destaca a socióloga Eva Blay, a combinação entre instalações elétricas precárias e produtos têxteis inflamáveis foi a causa do incêndio na Fábrica Triangle Shirtwaist, em Nova York.
A porta de saída da empresa estava fechada ostensivamente para evitar que as operárias roubassem materiais ou fizessem pausas. Na ocasião, morreram 146 pessoas – 125 mulheres e 21 homens, na maioria judeus. No prédio onde aconteceu a tragédia funcionam hoje as Faculdades de Biologia e Química da Universidade de Nova York. Uma placa fixada na fachada destaca que o edifício possui significado nacional para os Estados Unidos. No dia 5 de abril, apesar da chuva, houve um grande funeral coletivo que se transformou em demonstração trabalhadora, com cerca de 100 mil pessoas.
Condições de segurança de trabalho
Apesar dos fatos históricos, o jornal Folha de S.Paulo chegou a fazer, em 2007, uma edição especial em homenagem ao aniversário de 150 anos do incêndio que não aconteceu. O jornal A Tarde, periódico de maior circulação na Bahia, repete o equívoco na edição de 8 de março deste ano, com a matéria “Violência persiste 153 anos depois de incêndio em fábrica de tecidos”. Em matéria no caderno especial publicado em 2007, a Folha de S.Paulo cita o suposto incêndio de 1857 como o primeiro de uma série de acontecimentos que teriam marcado “os últimos 150 anos da história das mulheres no Brasil e no mundo”. O periódico vai ainda mais longe ao anunciar um debate em que “serão discutidos o feminismo e o direito das mulheres 150 anos após o massacre de 129 operárias em Nova York”.
A edição da Folha de S.Paulo do dia 8 de março deste ano não faz referência à tragédia na fábrica, mas também não comunica a seus leitores os cem anos da data. Apesar de o Partido Socialista da América ter proposto a criação de um Dia Internacional da Mulher em 1909, no Estados Unidos, a declaração foi assumida pela comunidade internacional no ano seguinte, 1910, durante o II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas em Copenhague, na Dinamarca. Na ocasião, a alemã Clara Zetkin (1857-1933), membro do Partido Comunista Alemão, propôs que fosse designado um dia especial para a luta dos direitos das mulheres em uma sociedade cada vez mais industrializada. Mas nenhuma data precisa foi definida.
O incêndio na Triangle Shirtwaist, que aconteceu um ano após o Congresso em Copenhague, foi importante, posteriormente, para a melhoria das condições de segurança de trabalhadores como um todo, e não apenas das mulheres, já que também havia homens entre as vítimas. Assim como na Europa, era intenso o movimento trabalhador nos Estados Unidos desde a segunda metade do século 19. Homens, mulheres e até crianças sofriam com as péssimas condições de trabalho e salários reduzidos. A oferta de mão-de-obra era imensa devido à imigração de europeus, muitos deles judeus e com um passado de militância política.
Questões diversificadas de gênero
No último domingo de fevereiro de 1908, ou seja, antes do incêndio, mulheres socialistas dos Estados Unidos fizeram uma manifestação que chamaram Dia da Mulher. Reivindicavam o direito ao voto e melhores condições de trabalho. No ano seguinte, em Manhattan, a data reuniu 2 mil pessoas.
A referência direta ao 8 de março só foi feita em 1917, quando trabalhadoras russas do setor de tecelagem entraram em greve. A data passou a ser comemorada com mais intensidade na década de 60, período de fortalecimento das bandeiras do feminismo, como a busca da igualdade e a denúncia da opressão masculina. A consagração veio com o apoio internacional, em 1975, quando a Organização das Nações Unidas instituiu oficialmente a data como o Dia Internacional da Mulher.
É possível que a tragédia envolvendo as trabalhadoras da Triangle tenha se incorporado ao imaginário coletivo da luta das mulheres. Mas o processo de instituição de um Dia Internacional da Mulher já vinha sendo elaborado pelas socialistas americanas e européias. Apesar da imprecisão dos fatos históricos comumente divulgados e da associação cada vez mais freqüente da data ao universo do consumo, o Dia Internacional da Mulher é um momento importante no calendário das lutas pelos direitos das mulheres, inclusive pela maior cobertura, nesse período, de questões diversificadas de gênero, a exemplo do espaço ocupado pelas mulheres nas instâncias de poder e sua participação política.