De tempos em tempos se discute a tortura no Brasil até que não se discute mais, o que nos leva a crer que ela é discutida não segundo o molde de uma sociedade que escuta, mas no molde de uma sociedade que precisa de pequenas catarses, para, daí, não escutar nada. Documentário "Que bom te ver viva", de Lúcia Murat, traz relatos de mulheres vítimas de tortura, servindo de grande documento de análise. Porque a tortura, historicamente defendida, atualiza uma estratégia de dominação sobre as mulheres e a expande para todos os cantos. O artigo é de Cesar Kiraly.
Cesar Kiraly
Por acidente comecei a assistir a um documentário no Canal Brasil sobre tortura, a coisa toda prendeu a minha atenção, porque acabara de escrever sobre tortura, aqui na Carta Maior, e porque estamos em tempo de discutir a tortura, novamente, até que algo se escute. De tempos em tempos se discute a tortura até que não se discute mais, o que nos leva a crer que ela é discutida não segundo o molde de uma sociedade que escuta, mas no molde de uma sociedade que precisa de pequenas catarses, para, daí, não escutar nada. As dores, como os prazeres, duram no tempo apenas quando instituídas, mas, se não, somem ou se desintegram. Pois bem, existe uma crueldade em deixar a tortura se instituir, para que não a cometamos mais, algo como um espinho que sabemos da existência, esse é o preço da moralidade, sabermos da existência do mal.
Este documentário a que assisti foi dirigido por Lúcia Murat e consiste numa série de relatos de mulheres que foram torturadas, atravessados por um monólogo de Irene Ravache. Data-se com 1989. Trata-se da perspectiva feminina da tortura, ou seja, daquela das muitas violências sexuais, dos muitos partos em detenção, dos muitos partos depois de torturas e violências sexuais, de muitos abortos por tortura e violências sexuais. Por certo, o título torna a proposta muito explícita: “Que Bom te Ver Viva”.
No que comecei a pensar sobre a tortura para o ensaio passado, escrevi sobre a relação de dependência entre formas de vida e modos de consecução da dor, para isso utilizei a expressão estética da tortura, e me vali, como roteiro, do bom filme “A História Oficial”. Algo como uma comparação entre estéticas da tortura parece ser relevante de ser aprofundada. No argumento da estética da tortura, e pensava nas especificidades da estética argentina, defendi que a tortura era possível enquanto acontecimento com choques, estupros e afogamentos, em virtude de um conjunto maior de imagens que sustenta e provoca a tortura. Essa hermenêutica da dependência entre imagens, contudo, pode ser explicada pelos interesses econômicos e políticos de regime. A classe média argentina, do período militar, quer a tortura, porque ela é necessária para o mundo da classe média argentina.
A crítica a tortura costuma se dar na negação de apenas uma partícula de mundo, como se fosse possível suprimir o fenômeno sem suprimir o mundo. Deve-se suprimir mundo e fenômeno. Mas quis apontar a falácia do argumento da supressão de partículas de mundo, no que concerne à tortura, e para isso utilizei a elementaridade da estética. Tentei mostrar que a tortura é possível numa opção estética pelo mundo da tortura e toda a sua relação entre cores.
No caso da classe média argentina a tortura é sustentada por paleta de cores sóbrias e ambientes de frivolidade para os sentidos. Este mundo argentino sóbrio, d’A História Oficial, confere às distinções uma forte clareza sobre o que é e o que não é a tortura: no mundo argentino os termos da imagem dialética possuem contornos bem definidos. A entrada no assunto é sempre complicada, mas o universo da tortura no Brasil não se dá pela sobriedade e pela sustentação de uma vida sóbria, porque a tortura no Brasil é sustentada por uma imagem de vida festiva.
Pode ser apenas uma intuição tola, mas penso que a feminilidade possa ser a chave para se compreender a tortura latino-americana, e aí, combatê-la. Nesse sentido, este documentário de Murat pode servir de grande documento de análise. Porque é na feminilidade, dilacerando-a, que a tortura realiza os efeitos mais nefastos, porque a tortura, historicamente defendida, atualiza uma estratégia de dominação sobre as mulheres e a expande para todos os cantos. A tortura se firma como um constrangimento público para se falar dela, tornando, como instrumento de sua instituição, a vítima em seu próprio algoz. Publicamente o torturado é interpelado como aquele que esconde os motivos que o levaram a ser colocado naquela posição. Resta um contínuo: “o que será que ela fez para merecer?” Mais ou menos como a antiga indagação acerca da responsabilização da alma por alguém ter nascido mulher.
Mas parece que a estrutura da tortura brasileira, e não podemos nos furtar de dizê-lo, está presente em quase todas as relações oficiais de dominação. A família, que é cada vez menos oficial, parece-me o menor dos problemas. Por isso, se existe alguma especificidade na formação do Brasil contemporâneo, algo que seja presente desde nossas raízes, trata-se dessa estrutura criada, e muitas outras, em dor e não exumada. A estrutura da tortura permanece viva em muitos âmbitos de nossas vidas – o culpado é quem se pronuncia –, enquanto compramos carros, reformamos a casa, nos vestimos com cores e vamos dormir de ar-condicionado no verão, usando cobertores. Esperar que os torturados morram para conceder voz parece ser muito pequeno. E parece ser levar muito a sério a representação política (deixar que alguém fale por outro).
Na mesma medida, esperar que os dominados morram para apenas aí conferir voz pública, voz aos ausentes, parece ser muito pouco. Não parece ser pedir muito: vida política na qual se fale em nome próprio sem o forte controle da vergonha pela coragem alheia.
Cesar Kiraly é doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e coordenador do Laboratório de Estudos Hum(e)anos da mesma instituição. Autor dos livros O Guarda-Chuva de Regras e Os Limites da Representação. Escreve no blog: http://cesarkiraly.opsblog.org/
FONTE: Carta Maior