Nairóbi, 20/08/2009 – Cada dia, milhares de mulheres são vítimas da violência de gênero na África, mas muitas não procuram a justiça porque sentem medo e vergonha diante de um sistema insensível à sua situação. Os dois filhos de Florence Mukambi morreram queimados em suas camas e ela ficou desfigurada e na miséria depois que dois jovens de uma etnia rival incendiaram a cabana onde vivam nos arredores de Nairóbi. Os três foram vítimas da violência interétnica que começou nesse país após as disputadas eleições presidenciais de dezembro e que causou a morte de um milhãode pessoas e 350 mil refugiados internos.
Joshua Kyalimpa, da IPS
Mukambi ainda reside no bairro de Kibera, um enorme assentamento de cabanas construído poucos quilômetros a sudoeste de Nairóbi em um terreno onde se joga o lixo da área. Mais de um milhão de pessoas vivem ali, sem saneamento e em contato com fezes humanas e de animais lançadas pelos esgotos, pó e cinzas. O motivo do ataque incendiário foi a origem étnica de Mukambi e seus filhos, todos kikuyus, enquanto a maioria da população de Biera é de origem luo. “São estes que engendram nossos inimigos”, gritaram seus atacantes. A tensão entre as duas etnias aumentou depois que Mwai Kibaki, também kikuyu, foi declarado vencedor nas eleições de 2008 contra Raila Odinga, um luo.
Nesse dia, como de costume, Mukambi havia comprado bananas doces para revender e conseguir dinheiro para pagar a escola dos filhos. Nunca imaginou que seria o último dia em que veria com vida sua filha de 11 anos e seu filho de oito. Mukambi já não pode trabalhar porque tem a mão direita queimada gravemente e perdeu as orelhas. Os canais auditivos estão cobertos por pele que se regenera e acumula sem cessar. “Não posso ouvir nem trabalhar para comer. E meus filhos, que poderiam cuidar de mim, estão mortos”, conta entre lágrimas.
Mukambi necessita de enxertos de pele e cirurgia corretiva, explicou Carol Ogengo, diretora-executiva da organização Tomorrow’s Child Initiative, que a ajuda. A organização se interessou por seu caso quando Mukambi recorreu a ela para denunciar a morte dos filhos. “O caso dela não se enquadraria em nosso esquema, mas nos comoveu o trauma que sofreu com a morte dos filhos”, disse Ogengo. Mas Mukambi é apenas a ponta do iceberg.
Milhares de mulheres, tanto no Quênia como em muitos países africanos, vivem a violência diariamente, e não apenas por parte de estranhos, mas muitas vezes a partir de seus entes queridos.
No Centro de Recuperação da Violência de Gênero (GVRC), vinculado ao Hospital de Mulheres de Nairóbi Teresa Omondi, recebe casos de todo tipo, como “violações, ataques sexuais que incluem penetração nas áreas genitais com dedos e paus, e inclusive crianças obrigadas a praticar sexo oral”. Desde sua criação em 2001, o centro recebeu mais de 14 mil casos, 49% tendo como vítimas mulheres, 45% meninos e meninas e 6% homens. A todos é oferecido tratamento, assessoramento e ajuda para que recorram aos órgãos de justiça.
Omondi, advogada, expressa sua desilusão pela forma como se lida com os casos de violência doméstica. Embora a lei estabeleça que todo médico habilitado pode apresentar um relatório como evidência perante os tribunais, em muitos casos os médicos do Estado apresentam informes contraditórios que livram o acusado. “Me pergunto se isto não é uma conspiração para brutalizar as mulheres”, disse Omondi, e acrescenta que as mulheres procuram muito mais tratamento médico do que assistência legal. “Algumas só querem ser tratadas para se sentirem bem e esquecerem o assunto”, afirmou.
Carol Njeri, médica do centro, diz que em um dia normal recebe de três a quatro casos de violação em seu plantão de seis horas. Como cada turno tem três médicos, ela atenderia apenas um terço das vítimas. Omondi acredita que as mulheres temem recorrer à justiça nos casos de violência de gênero porque os atacantes costumam ser pessoas que conhecem. “Na maioria das vezes trata-se do pai, tio, primo, vizinho, dono da loja”, disse. Essa situação, junto com a animosidade do sistema judicial, inibe muitas vítimas.
A diretora-executiva da Associação de Mulheres Advogadas do Quênia (Fida), Patricia Nyaundi, diz que ainda falta muito para se fazer justiça com as milhares de vítimas de violência de gênero. Calcula-se que mais de mil mulheres foram violadas e atacadas em janeiro e fevereiro de 2008, depois das eleições. Nyaundi falou a jornalistas da África oriental e austral em um painel sobre como informar a violência de gênero, organizado em Nairóbi pelo escritório regional da IPS (Inter Press Service). Assegura que muitas mulheres preferem não denunciar a violência para não passar vergonha. Todo o sistema judicial, da polícia aos tribunais, é insensível ao gênero, ressalta Nyaundi.
“Quando se faz a denúncia na delegacia o policial pergunta por que estava na rua tão tarde. No tribunal acontece o mesmo. Sente-se que a mesma violência acontece de novo”, conta Nyaundi. “E como enfrentar a justiça quando se tem problemas mentais, ou é surda, etc?”, acrescenta. Nyaundi defendeu a criação de um fundo de ajuda às vítimas da violência de gênero que lhes permite recorrer à justiça. “Este país tem riqueza para criar um fundo para ajudar 20 mil vítimas de violência de gênero por mês”, afirmou.
A ativista propõe que nos casos de violência contra crianças haja intermediários para evitar que as vítimas se enfrentem com seus algozes na mesma sala. Isso seria outra forma de tortura e intimidação, acrescentou.
(IPS/Envolverde)