Arísia Barros
´Eram todos pretos. A miséria que os rodeava tinha cor indefinida. Ou miséria tem cor? Eram todos pretos e estavam estranhamente rígidos feito transeuntes de efêmera passagem pela vida.
A morte os fazia mais pretos e de tão pretos, indigentes invisíveis. A invisibilidade demarcando espaço com a indiferença alheia. Foram mortos enquanto dormiam. Nenhum de bala perdida. A bala do racismo é certeira.
Eram todos pretos e dormiam no limbo de uma existência sem muita significação. Nem para eles. Nem para os outros. Praticavam pequenos roubos na vizinhança comercial e a noite dormiam em colchão de papelão disputado a tapas. Às vezes encontravam um saco de cimento…
O pequeno ainda usava uma chupeta pendurada no pescoço e a alma recheada do oco da cola de sapateiro.
Quantos anos? Talvez cinco. Mirrado. Sete? Quem sabe? Alguém quer saber?
A piedade cristã embrulha os corpos com jornais. Notícias fresquinhas de mortes iminentes. Sem mãe. Nem pai. Todos pretos. Todos meninos. Todos solidão. Todos passado.
Eram meninos diferentes de todos os outros que moram em nossas casas. Eram meninos com a selvageria das ruas. Vence quem mais esperto for. Eram meninos que não conheciam as letras, nem com elas formavam sonhos.
Eram meninos com a ferocidade que só o abandono provoca e demora uma vida para reabilitar. Eram meninos e dificilmente se tornariam homens.
Uma vez os vi disputando os restos de sanduíche dos lixos. Sanduíches e restos de papel higiênico.
Quantas vezes tomavam banho? Quem os aconselhava a escovar dentes. E antes de embrulhar-se com o saco de cimento qual oração pronunciavam?
Acreditavam em Deus? Tinham medo de escuro?
Eram todos meninos. Todos pretos. Todos pobres. Meninos pretos que morreram como homens.
Assassinados.
Fonte: Lista Racial
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