IARA LEE: "Queremos um navio do Brasil em Gaza"

Claudio Dantas Sequeira – revista ISTOÉ
Depois de enfrentar Israel, cineasta começa a organizar uma missão brasileira para integrar novo comboio de apoio aos palestinos

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Nesta entrevista à ISTOÉ, a paulistana de 48 anos, filha de imigrantes japoneses, conta como se engajou em causas humanitárias mundo afora. “A invasão do Iraque me deixou injuriada. Saí dos EUA e fui morar no Oriente Médio para entender melhor a perspectiva deles”, diz. Iara viveu na Tunísia, testemunhou o bombardeio israelense no Líbano em 2006, filmou no Congo e na Coreia do Norte. O trabalho intenso consome 24 horas de seu dia, o que, segundo Iara, inviabilizou sua vida pessoal. “Não dá tempo para ter uma relação”, explica ela, que foi casada com o crítico paulista Leon Cakoff e depois com o americano George Gund, sócio dela na Caipirinha Foundation, ONG cultural de apoio humanitário. Quando pode, telefona para a mãe em São Paulo. “Ligo para dizer que ainda estou viva. Ela já se acostumou.”

“Precisamos de combustível para os barcos. Isso poderia ser
doado pela Petrobras. É melhor do que pedir para o Chávez”


ISTOÉ –
Como é voltar para casa depois de ter amigos mortos e passar sete dias encarcerada, sob acusação de terrorismo?

IARA LEE –
Estou muito agradecida pelo apoio de todas as pessoas que expressaram sua solidariedade e pelo trabalho da embaixada brasileira. Fui a primeira prisioneira a dar uma entrevista. Estávamos incomunicáveis, sem acesso a advogado. Não deixaram a gente ligar para a família. Mas aí o diplomata brasileiro que me visitava achou um cantinho na prisão onde tinha sinal de celular e me pôs em contato direto com a imprensa. Foi esse “jeitinho”, tipicamente brasileiro, que me permitiu pôr a boca no trombone.

ISTOÉ –
A sra. recebeu um telefonema do ministro Celso Amorim assim que deixou a prisão?

IARA LEE –
Sim. Ele me ligou pessoalmente para manifestar solidariedade, elogiou nossa missão e disse confiar na Justiça internacional para que o bloqueio seja suspenso e o episódio do ataque seja completamente esclarecido.

ISTOÉ –
Acredita que Israel suspenderá o bloqueio à Faixa de Gaza?

IARA LEE –
Se isso não acontecer, a gente vai organizar outra missão. Os palestinos em Gaza estão vivendo uma punição coletiva, que é ilegal perante as leis internacionais. Soube que um barquinho simbólico judeu está indo para Gaza, o que prova que os judeus também estão se mobilizando contra essa agressão, pois sabem que isso é contra Israel e a paz.

ISTOÉ –
O governo brasileiro condenou duramente o ataque a Israel. Isso não prejudica a tentativa de mediação do conflito?

IARA LEE –
O que o governo Lula está fazendo é maravilhoso. O império americano está decaindo, e a Europa também enfrenta problemas. O Brasil tem uma posição natural de liderança e deve exercê-la com inteligência. Não só o governo, mas a sociedade também.

ISTOÉ –
Na flotilha, havia pessoas de 50 países diferentes. A sra. era a única brasileira?

IARA LEE –
Sim. Faltou gente da África, da Ásia e da América Latina. Agora há pouco estava em contato com o pessoal da IHH para saber exatamente se eu já posso começar a mobilizar o Brasil, porque estamos querendo fazer o próximo comboio ainda maior. Toda a repercussão que houve no Brasil nos chamou a atenção. O ideal seria ter um navio representando o Brasil, com pelo menos umas 50 pessoas. Também estamos precisando de combustível para os barcos. Isso poderia ser doado pela Petrobras. Seria melhor do que pedir para o Hugo Chávez.

ISTOÉ –
De que forma vocês pensam em mobilizar as pessoas no Brasil?

IARA LEE –
O meu Facebook está uma loucura, eu recebo mais de 100 pedidos de amizade… Acho que, em vez de ficarmos no papo-furado, podemos mobilizar esse pessoal para uma ação real mesmo. Essas redes sociais devem ser usadas para coisas concretas.

ISTOÉ –
O governo estava organizando um jogo da paz entre Flamengo e Corinthians lá na Faixa de Gaza, mas acabou adiando. Em tempos de Copa do Mundo, seria o caso de retomar essa iniciativa?

IARA LEE –
Seria uma coisa maravilhosa, pois o futebol une o mundo. É uma das poucas coisas que todo mundo ama. A gente ficava falando que, se o Ronaldo (Fenômeno) estivesse no nosso barco, Israel não atacaria a gente. Precisamos de pessoas assim, de perfil bem alto, para apoiar nosso trabalho.

ISTOÉ –
Você tinha algum papel específico no comboio?

IARA LEE –Fui como passageira e ativista, mas também como cineasta para documentar a manifestação. A Caipirinha Foundation contribui financeiramente para a IHH há dois anos. Faz parte do projeto Culturas de Resistência, que discute como as pessoas, de maneira criativa, resistem a essas guerras, ao militarismo, a essas brutalidades, por meio da fotografia, da música, da dança.

ISTOÉ –
Foi possível registrar o ataque?

IARA LEE –
Não deu para filmar os soldados israelenses matando as pessoas. Mas deu para fazer uma panorâmica de tudo. É possível ver as pessoas totalmente ensanguentadas, os feridos, os mortos. Também registramos os comandos israelenses descendo no navio e os botes nos cercando, como se estivéssemos vivendo uma terceira guerra mundial. Realmente, foi um negócio superexagerado!

ISTOÉ –
O governo de Israel alegou que seus militares foram atacados quando abordaram o navio…

IARA LEE –
Obviamente, as pessoas no nosso barco pegaram vassoura, cadeira, o que tinham à mão para se defender, e não o contrário. Imagina, os caras falam que eram inocentes e nós os culpados.

ISTOÉ –
Mas Israel divulgou imagens de facas usadas pela tripulação…

IARA LEE –
Isso é propaganda ideológica. Editaram as imagens e publicaram só o que lhes convinha. A coisa mais absurda é que eles roubaram o material de todas as pessoas, confiscaram câmeras, fitas, hard drives e ficaram lá assistindo e retirando as coisas que eram contra eles. Além de assassinos, são ladrões. E mentirosos, pois colocaram no YouTube o que interessava.
Uma cara-de-pau!

ISTOÉ –
Israel se nega a sofrer uma investigação internacional conduzida pela ONU, e os EUA parecem não se incomodar com isso…

IARA LEE –
É surreal Israel fazer uma investigação sobre seus próprios crimes. Estamos em 2010, e o conceito de lei internacional ainda é tão fora do alcance da compreensão desses governos. Não nos resta outro caminho senão continuar trabalhando em prol da aplicação da lei internacional. Se todos os outros países cumprem a lei internacional, por que Israel é exceção?

ISTOÉ –
A sra. já sofreu alguma pressão ou ameaça por emitir essas opiniões contra os governos dos EUA e de Israel?

IARA LEE –
Recebo quilômetros e quilômetros de e-mails com ofensas e ameaças, a maioria grosseira, impublicável. São textos anônimos, eles não têm nem coragem de assinar. Quando fiz o evento na Coreia do Norte, ficaram me enviando textos dizendo que trabalho para o Kim Jong-il. É típico dos israelenses. A gente achou que com o Obama fosse melhorar.

ISTOÉ –
Quando a sra. se engajou nessas causas humanitárias?

IARA LEE –
Eu saí do Brasil no final dos anos 80 e vim para os Estados Unidos. Quando o governo Bush invadiu o Iraque, fiquei muito injuriada. Então saí daqui e fui morar lá para aqueles lados do Oriente Médio e comecei a entender melhor a perspectiva deles, qual era a visão deles. Morei um pouco na Tunísia, no Líbano, inclusive quando Israel bombardeou o país. Tenho experiência de primeira mão do que é a brutalidade israelense. Mais uma vez, escapei depois de vários dias de solidariedade com os libaneses. Fui embora nos ônibus brasileiros.

ISTOÉ –
Dá para associar o trabalho de cineasta à atividade de apoio humanitário?

IARA LEE –
Com certeza. Quando eu era bem jovem, fazia a arte pela arte. Meus documentários eram mais uma discussão sobre a tecnologia, sobre a arte e a cultura. Mas fui amadurecendo e vi que a arte e a cultura tinham de ser utilizadas para uma coisa maior, em âmbito social. Então, nesses últimos anos, eu tenho utilizado a arte e a cultura para uma mudança social, para promover a paz com justiça. Não só na Palestina.

ISTOÉ –
Quem patrocina a Fundação Caipirinha?

IARA LEE –
O dinheiro vem da iniciativa privada. A beleza da nossa fundação é que nós lidamos com temas de confronto. Os ricos geralmente doam dinheiro para balé, ópera, museu, etc., mas nós tentamos usar o dinheiro que entra para ajudar os ativistas, temas mais complicados. Também combatemos o uso de crianças soldados. No Brasil, ajudamos os indígenas, já fizemos documentário com aqueles que são contra as usinas hidrelétricas. É preciso muita determinação.

ISTOÉ –
Já esteve na Faixa de Gaza?

IARA LEE –
Em janeiro, eu estava no comboio que entrou em Gaza pela fronteira do Egito. A mulher do presidente egípcio, Hosni Mubarak, permitiu que 100 pessoas, de um grupo de 1.400, entrassem. Fiquei lá três dias. Gravei um documentário com os pescadores palestinos, que são proibidos de pescar em seu próprio litoral. Israel tem de começar a tratar os palestinos como pessoas normais.

ISTOÉ –
Nesse conflito, há radicais dos dois lados. Não é o caso de vocês também fazerem um apelo ao Hamas para que cessem seus ataques?

IARA LEE –
Sim! Tanto é que agora a gente falou com o Hamas. Isso aqui é com Israel e a comunidade internacional. Nem comecem a se meter porque não tem nada a ver. Radicalismo contra radicalismo não leva a nada. Temos de respeitar todos, judeus, muçulmanos, cristãos e celebrar nossas diferenças. Senão será o fim da espécie humana.

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