Folha de S. Paulo
Em busca de votos, candidatos submetem a agenda política civil aos interesses e prioridades de comunidades religiosas
Hóstias, cânticos, defumações: o candidato, ou candidata, abaixa a cabeça e se deixa abençoar pelo padre, pelo pastor, pelo babalaô -e segue, em odor de santidade, para seu próximo compromisso de campanha.
Uma passeata gay, quem sabe; um evento pela diminuição da carga tributária; ou então um encontro com profissionais da saúde pública. Questões como o aborto ou a distribuição de camisinhas serão lembradas; exorciza-as o candidato que comunga, bate no peito e calça as sandálias da humildade -para arrastá-las lepidamente, dias depois, num forró em Pernambuco ou numa escola de samba carioca.
Tanta versatilidade por parte dos políticos até que se reveste de um aspecto positivo: acentua o espírito de tolerância e ecumenismo que tem sido um patrimônio importante da cultura brasileira.
Entretanto, na medida em que os candidatos multiplicam suas peregrinações a locais de culto, vão ficando visíveis os sinais de um processo mais complexo e, em certa medida, preocupante.
Em primeiro lugar, trata-se do crescente desprestígio da atividade política enquanto tal. Comícios, discursos e plataformas programáticas já não atraem nem convencem.
Inventou-se o recurso do showmício – o candidato entrava em cena, a tiracolo de uma dupla sertaneja ou de alguma rainha do axé, acenava para a multidão, e em caso de indiferença o aparato sonoro estava pronto a incutir, em milhões de decibéis, o entusiasmo no coração dos cidadãos.
Proibidos pela legislação, os showmícios retornam pela porta dos fundos -ou da sacristia. Como os eventos musicais já não podem ser alugados para o marketing eleitoral, outro tipo de marketing -o religioso- serve para oferecer aos candidatos o palanque, e a plateia dócil, de que precisam.
O estratagema tem um preço -e aqui se localiza o mais nocivo aspecto da questão. Assim como a busca por mais espaço no horário gratuito da TV leva os candidatos a um jogo invertebrado de alianças partidárias, a esperança de fazer do altar um palanque, e dos templos, currais eleitorais, vem submeter a esfera civil ao confessionalismo religioso -quando não aos interesses inconfessáveis que, por vezes, a este se associam.
Que política terá o candidato no campo das concessões de rádio e TV? Aceitará manter as isenções fiscais de que se nutrem os cultos de todo tipo? Com que tipo de preconceitos compactua, quando se submete à romaria?
A candidata do PV, Marina Silva, ao menos tem sido clara em suas atitudes. É evangélica. Perde ou ganha votos com isso; já se confundiu sobre a questão do ensino do criacionismo nas escolas, é contra o casamento gay, e avisou aos interessados que não participaria da passeata de ontem na avenida Paulista.
Respeitem-se suas posições; mas é a religião, no que tem de acrítico e de moroso, falando mais alto do que a modernidade republicana. Quanto a José Serra e Dilma Rousseff, a religião não fala, mas impõe-lhes o silêncio, em troca de votos. Descaracterizam-se, desconversam, dizem amém -e oferecem, a quem quiser acreditar, o espetáculo regressivo e a bem dizer ridículo da cordura e da compunção.