Aversão às mulheres

Ivan Martins – revista Época

O nome disso é misoginia – e você provavelmente pratica

Arquivo Época

IVAN MARTINS
É editor-executivo de ÉPOCA

Lembro com clareza da primeira vez que ouvi a palavra misoginia. Estava falando com uma colega de faculdade que acabara de voltar de uma reunião em uma revista para a qual escrevia resenhas literárias. Apesar do empenho da minha colega em ser simpática, apesar dos seus textos inteligentes e do seu sorriso encantador, o chefão da revista, que se cercava apenas de homens, fazia questão de ignorá-la. “É uma redação misógina”, ela concluiu desanimada. “Mulheres ali não têm a menor chance.”

Envergonhado com a minha ignorância, calei a boca e fui atrás do dicionário na primeira oportunidade. Lá estava. Misoginia: ódio ou aversão às mulheres. Estranha palavra. Ao contrário do que parece, não é sinônimo de homossexualidade, que se refere à ausência de atração sexual pelas mulheres. Tampouco se confunde com machismo, que considera as mulheres inferiores aos homens, mas tem um conteúdo paternalista, protetor.

A misoginia sustenta que os homens devem se libertar da influência ou dependência do sexo feminino. Ela considera que a mulher e o universo feminino são mesquinhos ou perigosos. O misógino despreza as mulheres e cultua supostas virtudes masculinas – força, coragem e inteligência, por exemplo.

Eis como se expressa um misógino: “Nenhum homem que pense profundamente sobre as mulheres mantém uma opinião elevada sobre elas. Ou os homens desprezam as mulheres ou nunca pensaram seriamente a respeito delas.” A frase é de Otto Weininger, um influente filósofo austríaco morto em 1903. No século 21 ninguém mais escreve essas coisas, mas o sentimento está por aí, vivíssimo. “Se mulher não tivesse bo…., eu nem cumprimentava”, eu ouvi outro dia. Era um amigo me contando o que ouvira na rua, dito em tom de brincadeira.

Por que escrever sobre uma coisa tão velha, tão burra e obviamente tão preconceituosa? Pela simples razão de que esse modo de ver as mulheres ainda faz parte do nosso pensamento. Aqui mesmo, nos comentários desta coluna, eu tenho lido repetidas agressões às mulheres, perpetradas por homens e algumas mulheres que eu considero claramente misóginos.

Eles não dizem mais que as mulheres são burras ou fracas. Mas dizem que são interesseiras. Dizem que são falsas. Dizem que elas são manipuladores e, contraditoriamente, que elas gostam de ser dominadas por homens escrotos. Dizem, sobretudo, que os sentimentos delas são subordinados a interesses materiais. “Quem gosta de homem é v….. Mulher gosta de dinheiro”, repete-se por aí.

A mulher que emerge dessas opiniões é uma espécie de bruxa, um monstro moral, uma criatura meio perigosa e meio desprezível de quem as vitimas não se afastam pela única razão de que dependem dela para o sexo. “Ruim com elas, pior sem elas”, diz o bordão. E reparem: não se trata de denegrir uma mulher em particular, um ser humano real que poderia ter esses e outros defeitos. A misoginia fala das mulheres no atacado, no coletivo, no geral. “Mulher é tudo assim”, se diz.

Por trás desse tipo de discurso há várias deformações. Uma delas, óbvia, é uma visão prostibular das mulheres. Os caras que dizem essas coisas acreditam, mesmo sem saber, que todas as mulheres estão à venda. Eles acham que todas elas são mercadoria. Pensam que as mulheres estão sempre atrás da melhor oferta: casam com o mais rico, namoram o mais poderoso, se aproximam de que tem mais status. Como eles ainda acham que as mulheres são incapazes de ganhar seu próprio sustento, sugerem que a vida delas tem o propósito velado de seduzir em troca de vantagens materiais. Princípios, sentimentos ou valores seriam acessórios. Existe até uma suposta teoria evolutiva que explicaria isso: por fracas e dependentes, as mulheres desde a idade das cavernas buscam machos mais fortes para ter com eles suas crias. A falta de caráter vira determinismo biológico.

É natural que poucos homens se reconheçam nessa descrição tão radical de misoginia. Mas, vistos de pertos, todos nós carregamos e divulgamos um pouco dessas ideias. Elas são antigas, afinal. Na cultura grega, foi a primeira mulher, Pandora, quem abriu por curiosidade uma jarra (não caixa…) e permitiu que dali saíssem todos os males que afetam os homens, como as doenças e a morte. É uma história parecida com a lenda hebraica de Adão e Eva no Paraíso. Criada da costela de Adão, Eva lançou a humanidade em desgraça ao comer o fruto proibido. Sempre as mulheres nos comprometendo, não?

No contexto moderno, em que as mulheres estão invadindo os ambientes masculinos do trabalho e disputando as mesmas prerrogativas sexuais de liberdade, essas ideologias subliminares têm uma função defensiva: elas reúnem os homens sob uma mesma crença, a de que eles são seres humanos melhores e ainda têm na vida um papel mais nobre que o das mulheres.

Mas basta olhar em volta para ver que isso não é mais verdade. Este ano, se faltassem outros exemplos, temos duas mulheres e apenas um homem disputando a presidência do país. São duas idealistas, com temperamentos e ideias totalmente diferentes entre si. Elas simplesmente não cabem no mesmo estereotipo feminino.

Ontem, aqui na Editora Globo, tivemos a premiação dos melhores trabalhos jornalísticos do ano passado. Boa parte dos prêmios, senão a maioria, foi recebida por mulheres – mulheres com idade entre 24 e 55 anos. E ainda ontem eu fiz uma palestra para estudantes de jornalismo da USP e notei o óbvio: que a maioria da turma era formada por mulheres. Mulheres curiosas, falantes e inteligentes. Elas simplesmente não vão parar de vir.

A moral dessa história, para mim, é que temos de parar de idealizar. A idealização machista das mulheres as reduz à condição de esposas e mães. Santas. A idealização misógina as transforma em medusas devoradoras da alma masculina. Putas. Mas as mulheres não são apenas santas ou putas. Elas são as duas coisas, entre tantas outras coisas – o que faz delas, como nós, criaturas fascinantes. E muito mais divertidas.

(Ivan Martins escreve às quartas-feiras no portal da Revista Época.)

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