O sequenciamento genético 100% sintético possibilitará criar medicamentos e combustíveis verdes no futuro
colônias azuis (alto) indicam o transplante bem-sucedido de genoma; abaixo, a bactéria mostrada em micrografia eletrônica
Cientistas do Instituto J. Craig Venter anunciaram nesta quinta-feira (20) que fizeram o primeiro organismo vivo a partir de um genoma criado em laboratório. Trata-se do primeiro mapa genético criado sinteticamente, que, neste caso, é uma bactéria já existente. A Mycoplasma mycoides , que tem um genoma muito simples, que ocupa apenas um cromossomo (os humanos possuem 46, ou 23 pares). O sequenciamento genético da bactéria foi copiado totalmente em laboratório e implantado em uma célula receptora, que sobreviveu. A nova bactéria se reproduziu mais de um bilhão de vezes, produzindo cópias com o mesmo DNA sintético.
Os pesquisadores esperam que o software usado nessa primeira experiência possa produzir bactérias sintéticas com finalidade prática. A ideia é usá-las para produzir remédios, vacinas e combustíveis menos poluentes, e que possam até absorver gases do efeito estufa. “Eu acho que elas potencialização uma nova revolução industrial”, disse Venter. Ele e seus colaboradores já estão em parceria com companhias farmacêuticas e de combustíveis.
Os resultados da pesquisa foram publicados na revista Science. Os pesquisadores recriaram quimicamente as proteínas que formam a base do DNA – adenina, guanina, citosina e timina. Para a M. mycoides, essas quatro proteínas se ligam, em pares, 580 mil vezes. Depois de ligados, os fragmentos foram montados, transformando-se num cromossomo artificial.
Entrevista: Craig Venter – “Não tenho medo de meus genes”
Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo
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Qual das afirmações abaixo melhor representa a sua opinião?
a) Deus criou o mundo. A natureza é uma obra-prima e não deve ser alterada
b) Deus não criou o mundo, mas a natureza é perfeita. O homem não deve modificá-la
c) A natureza é uma engrenagem admirável, mas o homem tem o direito de modificá-la com o objetivo de tornar sua vida mais confortável
É possível que nos próximos dias você precise reafirmar suas convicções numa roda de amigos. Ou em família. Ou num bate-papo na mesa do bar. Foi divulgado ontem (20 de maio) um feito científico da maior importância. Algo que nos faz lembrar o anúncio da criação da ovelha Dolly, em 1997.
Se você tem mais de 20 anos deve se lembrar da comoção provocada pelo surgimento da ovelhinha mais famosa do mundo. Ao conseguir produzir o primeiro clone de mamífero da história, o escocês Ian Wilmut expandiu o conceito vigente sobre reprodução. Arrebentou o paradigma do papai e mamãe. Provou que é possível criar uma cópia de um animal (ou de um ser humano) a partir de uma célula de pele.
Dolly ampliou os horizontes da medicina. Graças a ela, podemos hoje sonhar com os benefícios da clonagem terapêutica. Ou seja: podemos admirar a ideia de criar tecidos ou órgãos humanos sob medida a partir de uma célula da pele do doente que precisa de um transplante. Por essa técnica, já foi possível criar pequenos pedaços de órgãos humanos. As experiências prosseguem. Não duvido que em breve essa possibilidade se torne um fato corriqueiro.
Dolly fez mais do que isso. Ela colocou à prova nossas convicções éticas, filosóficas e religiosas mais arraigadas. Os cientistas estariam brincando de Deus? O homem teria o direito de intervir sobre a natureza de uma forma tão radical? As discussões duraram anos.
E, agora, devem recomeçar. O americano Craig Venter diz ter criado uma célula sintética. É o primeiro organismo vivo que funciona com DNA feito pelo homem – e não pela natureza. Há mais de 15 anos Venter tenta construir uma forma de vida artificial. Várias reportagens publicadas na última década relataram cada um de seus pequenos passos. A mensagem era sempre a mesma: “Ele está quase lá”. Parece que Venter finalmente chegou lá. Acompanhe o que ele fez, segundo o artigo científico que publicou na revista Science:
1) O código genético de uma bactéria (a Mycoplasma mycoides) foi decifrado. Como as bactérias têm apenas uma célula, elas são ideais para esse tipo de experiência
2) Venter descobriu a sequência de cada uma das “letras” químicas que formam o código genético da bactéria. Por exemplo: A (adenina), T (tamina), G (guanina), C (citosina)
3) Em laboratório, ele usou substâncias químicas que imitam a posição e a função de cada uma dessas letras. Assim, criou um DNA sintético (guardado no único cromossomo da célula)
4) Algumas “marcas-d’água” foram adicionadas para diferenciar o DNA sintético do DNA natural
5) O DNA artificial foi transplantado numa outra bactéria viva (Mycoplasma capricolum). A bactéria ficou com os dois DNAs (o artificial e o natural)
6) As bactérias começaram a se multiplicar. Algumas continham o DNA artificial. Outras apenas o DNA autêntico
7) O genoma sintético passou a produzir proteínas que, ao longo de várias gerações, foram substituindo as proteínas biológicas originais
8) Depois de trinta gerações, as bactérias tinham apenas o DNA sintético
Complicado? Sim. Assustador? Talvez. Uma coisa é certa: estamos diante de um conhecimento que não pode ser ignorado.
Venter disse que o organismo unicelular sintético inventado por ele é “a primeira espécie capaz de se reproduzir cujo pai é um computador”.
Isso significa que um dia qualquer pessoa poderá criar diferentes formas de vida em casa, mesmo que não seja especialista em bioquímica? O computador será capaz de fazer o trabalho complicado por nós?
Especulações à la ficção científica não faltarão. É preciso saber separá-las dos fatos. É preciso também ter em mente que Venter não criou, a partir do zero, uma forma de vida totalmente nova.
“Ele não criou vida. Ele a imitou”, disse o geneticista David Baltimore, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, ao jornal The New York Times. Se não pudesse copiar o funcionamento das bactérias perfeitamente banais que extraiu da natureza, Venter não teria chegado à célula sintética.
Jim Collins, professor de engenharia biomédica da Boston University, usou uma boa analogia para descrever, na revista Nature, o feito de Venter. “Imagine se fosse possível programar genes e células para que eles dessem origem a corações sintéticos que pudessem salvar um doente que precisasse de um transplante”, escreveu Collins. “O paciente recuperado não poderia ser considerado uma nova forma de vida artificial. O mesmo vale para o microorganismo que Venter produziu.”
Talvez o feito de Venter seja menos bombástico do que ele pretende nos fazer crer. Ainda assim, o tipo de intervenção que ele fez sobre a natureza é inédita e, claro, perturbadora. “Venter e seus colegas demonstraram que o mundo material pode ser manipulado para produzir aquilo que reconhecemos como vida”, escreveu Arthur Caplan, professor de bioética da Universidade da Pensilvânia, na revista Nature.
Caplan lembra que há mais de 100 anos o filósofo francês Henri-Louis Bergson dizia que uma força vital (élan vital) distinguia a matéria viva da inorgânica. Segundo Bergson, nenhuma manipulação do mundo inorgânico permitiria a criação de qualquer coisa viva.
Essa perspectiva vitalista manteve-se de várias formas ao longo dos séculos. “O cristianismo, o islamismo, o judaísmo e outras religiões também defendem que uma alma constitui a essência da vida humana”, escreveu Caplan. “Todas essas visões metafísicas são colocadas em dúvida pela demonstração de que a vida pode ser criada a partir de componentes não-vivos, ainda que esses componentes tenham sido originados de uma célula”.
Se as ousadias de Venter abalam pilares filosóficos, elas também abrem grandes perspectivas para a evolução da ciência. Procurei dois especialistas que sempre me socorrem quando o assunto é bioquímica para saber o que eles esperam desse novo momento. Um deles é o americano Daniel E. Weeks, professor de genética humana e bioestatística da Universidade de Pittsburgh. O outro é o brasileiro Alysson Muotri, professor assistente da Universidade da Califórnia, em San Diego.
“O artigo de Venter revela que a eficiência dessa tecnologia é muito baixa. Uma minúscula alteração faz com a célula não funcione. Vai demorar para que outros cientistas consigam repetir esse feito, mas acredito que essa tecnologia terá mais impacto na nossa vida do que a criação da ovelha Dolly”, diz Muotri. “As implicações são enormes. Não consigo pensar num limite.”
Segundo ele, a tecnologia pode permitir a criação de microorganismos para fins ambientais específicos, como degradar o lixo ou o óleo derramado nos oceanos. Também seria possível reduzir o custo da produção de vacinas e criar novas drogas. Quem sofre de intolerância à lactose, por exemplo, poderia tomar uma pílula que levaria uma bactéria capaz de produzir no intestino a enzima lactase (que ajuda a digerir a lactose). É claro que essa bactéria poderia ser nociva. Quem garante que ela não iria provocar úlceras, por exemplo. Nada é para já, mas as perspectivas para a saúde são promissoras.
O interesse principal de Muotri é a pesquisa básica. Ele acha que a biologia sintética poderá ajudar a responder questões fundamentais, tais como o funcionamento do cérebro. “Poderemos recriar o genoma de um Neandertal num sintetizador e movê-lo para dentro de uma célula-tronco embrionária. Assim, poderíamos produzir neurônios Neandertais e compará-los com os neurônios dos humanos modernos”. Não seria genial?
A invenção de Venter é excitante e preocupante. Não há dúvida de que ela poderia ser usada para o mal. Ela pode permitir a criação de armas biológicas sofisticadas. Já imaginaram o que seria uma bactéria letal destinada a liquidar um único grupo étnico? “Para evitar isso, o governo americano já está vigiando todos os laboratórios capazes de criar sequências sintéticas longas, como o laboratório do Venter, aqui ao lado”, diz Muotri.
Sempre que o homem modifica a vida — seja pelo corriqueiro melhoramento genético de uma árvore frutífera ou pela biologia sintética – a sociedade deve se preocupar com a segurança e com uma relação satisfatória entre riscos e benefícios.
A ciência deve ser livre para criar, mas é a sociedade quem dá o tom do que é aceitável. O caso da clonagem é um bom exemplo de controle social. Depois de calorosos debates, um acordo firmado nas Nações Unidos baniu a clonagem para fins reprodutivos. Chegou-se ao consenso de que apenas a clonagem para fins terapêuticos é aceitável.
Algo parecido pode acontecer com a biologia sintética. “Ela pode melhorar nossa saúde e nosso bem-estar”, diz Daniel E. Weeks, professor de genética humana e bioestatística da Universidade de Pittsburgh. “Mas precisamos tomar todas as precauções necessárias para garantir que as novas tecnologias sejam usadas com segurança”, diz. “Devemos criar mecanismos de regulação sem prejudicar a liberdade científica num campo que pode trazer muitos benefícios à humanidade”, afirma Weeks.
A ciência é um agente que faz avançar as fronteiras éticas e morais. O tempo todo ela testa os valores da sociedade e estimula profundas discussões. Venter não é o único cientista a praticar a biologia sintética. Talvez ele seja apenas o m
ais rico e ousado. Esses cientistas estão brincando de Deus? Não é a primeira vez que ouvimos isso. Nem será a última. Foi assim com as transfusões de sangue, com a fertilização in vitro, com a clonagem, com as células-tronco, com os transgênicos.
A novidade choca, mas em pouco tempo é incorporada tão amplamente a ponto de não nos lembrarmos como era a vida antes dela. “A criatividade humana não tem limites. Podemos aproveitá-la de forma positiva e regulamentada”, diz Muotri.
Será que daqui a trinta anos nossos netos ficarão surpresos quando contarmos que a criação da primeira célula sintética foi motivo de espanto e controvérsia? Até lá, quantas intervenções já teremos feito nesse nosso mundo complexo, imperfeito e fascinante?
Você concorda? Discorda? Queremos ouvir a sua opinião.