É o afeto, estúpido

Por Carolina Derivi, da Página 22

A entrevista a seguir pode provocar emoções fortes naqueles que se aferram demais às suas convicções. Palestrante consagrado e professor de Ética da Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA/USP), a especialidade de Clóvis de Barros Filho é desconstruir certezas. E deste exame minucioso, na melhor tradição filosófica, não escapam sequer os critérios éticos mais fundamentais da sustentabilidade.

 

Mas nada disso desqualifica a discussão, demonstra o professor. Materialista, como se intitula, Barros Filho diz que a sustentabilidade é a própria ética, a busca da melhor maneira de viver e conviver, aqui e agora. E, enquanto a lógica “consequencialista” de longo prazo apresenta as suas falhas, de certo mesmo só restam as emoções. O imperativo sustentável da interdependência poderia ser traduzido também por amor, “amor pelo mundo”, em que amante e amado compartilham o mesmo destino de alegria ou de tristeza. Um resultado que, a seu ver, só pode ser alcançado por uma “política civilizatória”, pautada pela educação.

“De tempos em tempos o mundo se organiza para zombar das nossas expectativas”, diz o professor, a exemplo da crise econômica recente. A despeito da hegemonia dos argumentos, toda elaboração racional seria, então, fluida e perecível, como também são os afetos e o próprio mundo.

Na sua opinião, a incorporação e a prática do ideário da sustentabilidade acompanham a extraordinária notoriedade que o termo adquiriu?

Não só a prática não acompanha como também não há clareza do que isso queira dizer. O mundo das corporações está muito acostumado a reproduzir discursos sem uma discussão sobre o significado dos conceitos que mais usa. Eu tenho até para comigo que não existe mesmo um sentido só. Talvez até uma espécie de luta pela definição legítima. Eu quero crer que a busca dos fundamentos desse tipo de conceito seja uma atividade fundamental para termos expectativa de um alinhamento prático. Tenho a impressão de que a sustentabilidade é mesmo uma questão ética por excelência, portanto uma questão prática por excelência. Serviria como uma espécie de critério de definição da vida boa. Quando várias vidas passam pela cabeça é preciso escolher alguma. Usamos critérios existenciais. Esses critérios se desmentem muitas vezes, contradizem-se. O mundo corporativo chama esses critérios de valores. A sustentabilidade é um valor nesse sentido, uma chave existencial que se utiliza para escolher uma vida em detrimento de outras.

É só o capitulo mais recente de uma busca atemporal pela vida boa?

A busca sempre existiu e a sustentabilidade também. Talvez só a palavra seja recente. Eu vejo na ideia de sustentabilidade um fundamento remoto do pensamento grego dominante. E que tem a sua fórmula mais bem-acabada no pensamento estóico. Quero dizer, os gregos estavam convencidos de que o universo é ordenado, cósmico. Isso significa que as coisas têm um lugar para estar, têm uma atividade que lhes é própria, o universo teria uma concepção sistêmica. Somos parte da engenhoca. Da mesma maneira que uma porquinha de um relógio não vê as horas, nós também não vemos para que serve o universo.

Eu tenho a impressão de que o conceito de sustentabilidade é inseparável dessa ideia. A de que uma vida mal vivida não só é ruim para quem a vive, mas estraga muito mais coisa. O que diferencia simplesmente uma ação boa de uma ação sustentável? Justamente as consequências dessa ação para outras existências. Na perspectiva grega, isso se chama lugar natural. E o indicativo de que a pessoa está no lugar certo é a eudaimonia, que a gente tem traduzido como felicidade. O Romário catando no gol está fora de lugar. O problema é que o Romário, de goleiro, não só entristece, tem um desempenho pífio, mas ele também fode o time. Isso nos permitiria concluir que a reflexão sobre a própria vida tem que considerar a vida dos outros. A sustentabilidade vai na contramão de tudo aquilo que se tem falado sobre o individualismo da pós-modernidade, o consumismo, como se o próprio prazer fosse o critério único de definição das vidas.

Isso tem tudo a ver com ética, no sentido de que a ética só se dá nas relações…

Partindo da premissa de que a ética é toda reflexão sobre a melhor das vidas possíveis e partindo de uma segunda premissa de que o mundo em que vivemos é social, a conclusão a que chegamos é que a ética é a reflexão sobre a melhor maneira de conviver. E naturalmente a sustentabilidade só explicita a importância da relação como critério de definição de existências individuais.

A Teoria da Espiral do Silêncio, de Elisabeth Noelle-Neumann, diz que as pessoas têm tendência a acompanhar a opinião dominante. Isso aconteceu com a sustentabilidade? Há um consenso no discurso que não necessariamente se traduz nas formas de aplicá-lo?

Eu me atreveria a dizer que essa hegemonia é tanto mais facilmente conseguida quanto menos preciso é o conceito. Por que eu não me oponho à sustentabilidade? Eu não tenho a menor ideia do que seja. E depois, como não mudou em nada a minha vida, se é legal ser sustentável, se está valendo um emprego, um olhar simpático dos outros, um paparico da mídia, então vamos pela sustentabilidade. É muito interessante que os franceses chamam essa palavra de durabilité. E aí o termo já me agrada muito menos. A perspectiva da sustentabilidade que eu tenho não inclui nenhuma expectativa de permanência. Ao contrário, a sustentabilidade é uma forma de vida que permite a melhor transformação possível do mundo. Não consigo entender muito bem o que é que tem de durar. Porque, se a sustentabilidade é forma boa de viver e conviver, isso só se pode dar no mundo da vida onde tudo é finito mesmo, perecível.

A melhor maneira de viver é também a melhor maneira de morrer, portanto, de não durar. Claro, sempre poderia haver uma reflexão na contramão. Há duas possibilidades de discussão de uma natureza humana compatível. A mais imediata é o altruísmo. Podendo agir pensando só em mim, eu vou agir pensando no outro. Mesmo que seja em meu prejuízo. Eu tenho muita dificuldade em defender essa posição. Porque, na verdade, o altruísmo gera um benefício recíproco? Eu nem diria recíproco. No final das contas, a coisa termina em mim. Eu sou uma luta pela preservação da minha potência de agir, sou uma luta pela minha alegria, e, por alguma razão, o outro vivendo melhor me alegra. Podemos comprar todo o pacote do platonismo cristão: corpo e alma, a alma é imaterial, por isso o corpo é desejante, mas a alma está acima, então a alma pode nos guiar na contramão dos apetites do corpo e aí então eu posso ser altruísta e preferir você a mim. Esse pacote eu tenho dificuldade de comprar.

E como bom leitor de (Benedito de) Espinoza, prefiro uma perspectiva onde corpo e alma vão paralelamente. Não vou nunca contra a minha alegria, nunca contra a minha potência de agir. Como diria (Blaise) Pascal, buscamos a felicidade até mesmo quando nos enforcamos. Agora, claro, pode haver a situação em que a minha felicidade dependa da sua. É o que muitos chamam de amor. Eu amo quando a alegria do amado determina a alegria do amante. E a tristeza do amado determina a tristeza do amante. Nós temos aí duas alternativas: ou uma alm

a transcendente que nos diz o certo a partir de uma verdade absoluta que se impõe ao nosso corpo, o que pode ser defensável também, ou uma perspectiva de amor pelo mundo, que me agrada muito mais. Em outras palavras, poderíamos dizer que quanto mais o mundo se alegrar e quanto mais eu me perceber causa dessa alegria, mais eu me alegrarei comigo mesmo e por causa disso eu agirei de forma adequada, digamos, para que outros também possam viver melhor.

Como se produz esse resultado de alegria em sintonia com o mundo?

Eu tenho para comigo que isso não é natural. Que isso tem de ser resultado de um processo civilizatório. O que todo processo civilizatório faz é alegrar, aplaudir, quando de um comportamento entendido como alinhado, e entristecer como castigo em consequência de comportamentos tidos como não alinhados. Isso dentro de uma perspectiva educativa que sai da tenra infância. Por que um sueco anda quadras para botar o lixo na lata certa e um brasileiro joga no bueiro? Certamente não é por uma genética escandinava. Certamente é porque esse sujeito aprendeu. O (Michel) Foucault ajuda com o conceito de “ortopedização” dos corpos. O sujeito aprende a se alegrar com certas situações e aprende a se entristecer com outras situações. A sustentabilidade tem que ser resultado de uma ortopedização dos corpos, como a civilização fez com o sexo.

O que fizemos do sexo?

O sexo é objeto de uma truculenta repressão. Vou te dar um exemplo doce. Você se lembra da publicidade do tiozinho da Sukita? Tem ali um casal e o rapaz respeitosamente puxa papo com a moça. Mas tem um descompasso estético, determinado provavelmente por um desequilíbrio etário, então, demonizou-se o tiozinho Sukita. Ele é um monstro. Porque a civilização constrói uma espécie de modelo afetivo autorizado e deslegitima iniciativas heréticas. No mundo dos afetos, antes de um trabalho desse naipe, nada me impede um encantamento por uma mulher de 70 anos quanto eu tenho 16. Ninguém tem nada com isso. Mas não. A civilização é rigorosa com essa questão de com quem você pode trepar.

Ora, se a civilização faz um trabalho explicativo, diário, do erotismo autorizado, e se esse trabalho é tão benfeito, porque estatisticamente são poucos os estupradores e demais destoantes, por que com a sustentabilidade também não poderia ser assim? Em outras palavras, dentro de uma perspectiva de prêmio e castigo, não há alternativa, pois a civilização tem meios para deixar você esperto. Então, nós carecemos de uma política civilizatória orientada pela sustentabilidade.

Isso pode ser necessário também para superar dilemas éticos impostos pela sustentabilidade? Por exemplo, a ideia de preservar as condições de vida para as futuras gerações. Por que eu deveria impor limites ao usufruto da minha própria existência em nome de vidas que ainda nem existem?

Escrevi bastante sobre isso. Quem discute isso são os utilitaristas, que surgem na Inglaterra no século XVIII. Qual é a ideia utilitarista central? É que uma conduta é boa pelo efeito que produz. Isso é alinhado com a ideia de sustentabilidade. A sustentabilidade também é uma filosofia moral consequencialista, os argumentos são consequencialistas, do tipo: se nós não fizermos nada agora, vamos estar fodidos mais pra frente. No utilitarismo, a boa consequência é o que eles chamam de alegria ou felicidade do maior número. O utilitarismo está presente no discurso da responsabilidade social. Não é só o lucro, mas agregar o maior número de público interno ou de stakeholders. O problema é que essa felicidade do maior número já é um embaço por si só.

Vou dar um exemplo dos mais simples. Eu vou dar uma aula ou uma palestra e tenho um auditório de 300 pessoas. Eu tenho que escolher a palestra que alegre o maior número. Só que eu não tenho a menor noção de quem são as 300 pessoas. E essas 300 vão chegar em casa e conversar. Então, a palestra vai afetar não 300, mas mil ou 3 mil. Qual será a melhor palestra? Já existe aí um problema. O segundo problema é: o que eu faço com o menor número? Pois se eu alegrei o maior número, só posso deduzir que entristeci o menor número. A que título a tristeza do menor número é justificável pela alegria do maior número? Isso parte de uma premissa “quantitativista” dos afetos de difícil sustentação.

E as futuras gerações?

Pois então, a terceira questão é se esse maior número inclui todos os seres viventes ou só os humanos. Eu devo considerar a alegria dos animais e das plantas na hora de agir? Veja que são elementos complicadores fantásticos para quem está pensado em deliberar sobre a vida, considerando que grande parte dos efeitos da minha conduta eu não acompanho. Eu dou uma aula, o aluno gosta da aula e chama a mãe para assistir à aula. E porque ela foi à universidade, ela tropeça e quebra a perna. De certa forma, a fratura da mãe do aluno é consequência da aula que eu dei e que o aluno gostou. Claro, fica evidente que depois de certo ponto você perde a mão dos efeitos. Mas, eu pergunto, não são efeitos? São efeitos. Se eu tivesse dado outra aula, o aluno não teria gostado tanto e a mulher não teria quebrado a perna. Então, o consequencialismo tem problemas. Qual é o limite, qual é o território cronológico dessa eficácia? Até onde eu posso ter responsabilidade pela minha conduta?

E aí chegamos ao último caso, o dos que não existem ainda. Eu teria que pautar a minha vida, que é de carne e osso, com inclinações, desejos e tesões, por vidas que são apenas possíveis. E por alegrias que são apenas pressupostas a partir do meu olhar. Quem me garante que nós não soframos mutações daqui pra frente e que o indivíduo em 2100 precise de poluição para sobreviver? Não me venha dizer que é impossível, pois, se tudo começou com uma ameba, é altamente improvável nós estarmos fazendo filosofia. No entanto, aconteceu. É com o olhar de hoje que eu suponho, apenas, vidas futuras que um meteoro simples pode decretar impossíveis. E aí eu me terei privado ao longo de 80 anos de existência de satisfazer os meus desejos em nome de uma hipótese.

De repente não parece mais um dilema…

Pois é. Dentro de uma perspectiva de uma vida boa, é uma transcendência na imanência. Claro, tudo isso é muito filosófico. Pessoalmente, eu teria a tendência a me preocupar menos com o mundo que eu vou deixar para os meus filhos do que com os filhos que eu vou deixar para o mundo. Há nessa história toda uma espécie de esquecimento de que, no final das contas, se a sustentabilidade é uma questão ética, é uma reflexão sobre a melhor maneira de viver. Então essa reflexão só tem sentido para quem vive. Para os que já morreram e para os vindouros, a vida não é. A vida só é aqui. Eu sou o mundo para você, você é o mundo para mim. Projeções e nostalgias são apenas refúgios decorrentes de uma vida frouxa, vivida com pouca intensidade no instante. Eu tenho a impressão de que existe um paradoxo. A defesa do meio ambiente acaba partindo de uma falta de conciliação com o real, que é instantâneo. A meu ver, há uma preocupação extraordinária com mundos que não são os nossos.

E o que dizer então sobre o consumo responsável? A crítica ao consumismo não esbarra também na ética das liberdades individuais, duramente conquistadas através dos séculos?

Claro, é verdade. É por isso que eu te disse que os valores se desmentem. Da mesma maneira que, no jornalismo, o direito à informação nem sempre caminha de braços dados com a privacidade. Você tem dois valores que se enfrentam na hora de escrever uma matéria qualquer. Vale mais a informação do público ou a privacidade do reportado? Se você puser um valor em cima do outro, o fará em função de a prioris (de critérios pré-estipulados) de fundamentação muito difícil. “Ah, mas o interesse público supera os interesses individuais”. Ah é? E por quê? Por que é mais gente? Você cai de novo numa perspectiva quantitativista de difícil sustentação. Esse indivíduo é que compõe o todo. E a somatória dessas tristezas poderá decretar uma tristeza generalizada. Eu sou a vítima da notícia hoje, mas amanhã será você, depois você, depois você. Eu acho que são discussões importantes que têm carecido muito de fundamentação. E a filosofia tem o que oferecer.

Eu vejo muito, em foros corporativos, que as pessoas sentenciam verdades com muita facilidade, sem perceber que, para cada afirmação daquela, há pelo menos dez bons argumentos em sentido contrário. Eu acho que é um assunto que está em construção. Esse tipo de reflexão ajuda muito a construir essa polifonia. Estar em construção é bom, desde que você não tenha a expectativa de um construto final, mas que permaneça sempre em construção. Porque assim é o sentido das coisas.

O senhor acredita que o “voto com a carteira” pode surtir efeito sobre o comportamento das empresas?

Quando você decreta a ameaça de falência de uma empresa, é possível que ela se alinhe para não falir, porque ela luta pela sua própria conservação. Resta saber se as pessoas na hora de consumir de fato pautarão suas escolhas, de forma quantitativamente significativa, por esse valor. Em cima de preço, por exemplo. Oxalá isso aconteça.

O senhor já disse que “as crises são pedagógicas, porque reveladoras”. O que a crise econômica de 2008/2009 revelou sobre a ética dominante?

A crise atual, como outras, denuncia a arrogância daqueles que querem fazer deste mundo da vida algo “prognosticável” e regido por leis seguras e firmes e, se me permitir, sustentáveis. De tempos em tempos, o mundo se organiza para zombar das nossas expectativas. De vez em quando ele faz com que cada encontro seja singular e cada afeto seja “irrepetível”. Toda formulação em cima disso é querer fazer de um episódio irrepetível uma fórmula. Portanto, um equívoco.

Então toda tentativa de balanço é frívola?

Mas aí já é tentativa, você já está baixando a bola. Desde que você tenha consciência de que tudo que você formular pode cair por terra em um segundo, eu acho ótimo.

O termo “ethos”, em grego, também quer dizer morada. A ética, na sua origem, tem ligação com o meio ambiente?

Sempre teve. Os gregos achavam que o mundo é uma televisão e você é uma peça da televisão. Você deve viver e funcionar de acordo com o que a televisão precisa de você. Eu não posso analisar a minha vida, e nenhuma escolha existencial é adequada, se eu tomar a mim mesmo como referência. Eu tenho que tomar o todo como referência, porque é o meu papel no todo que vai permitir a vida justa, ou ajustada com o todo.

A teoria econômica sustenta que todas as nossas escolhas são orientadas por maximizar o benefício individual. É parecido com o que os animais também fazem, guiados por instinto. Afinal, o que nos aparta dos animais?

Há os que não veem diferença nenhuma e eu teria tendência a me alinhar com estes. Mas há um milhão de argumentos na contramão.

Por que o senhor tenderia a concordar com estes?

Porque sou um materialista. Há diferença, claro, porque há diferença entre a foca e lagosta. Então há diferença entre mim e a foca. Mas o que se está dizendo aqui é que todos os animais estariam do lado esquerdo e o homem do lado direito. Essa é a perspectiva idealista, o homem teria um suplemento a mais. Filho de Deus, uma alma transcendente e imaterial, o que você quiser botar que o discriminaria completamente. Os animais são regidos por instinto totalmente. É o que diz (Jean-Jacques) Rousseau no Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens. O gato é 100% instinto, respeitará o seu instinto e morrerá de fome se você puser apenas um prato de alpiste do lado dele. O gato já nasce pronto, não se aperfeiçoa. Da mesma maneira que o gato não tem cultura, um acúmulo de saberes práticos. A tartaruguinha sai do ovo e já vai direto para o mar. Se você põe um filé do lado de um pombo ele também não come.

E o homem? Existe uma diferença significativa. O homem nasce e procura o seio materno por instinto, só que o instinto do homem não dá nem para a primeira semana. Então o homem é convidado a ir além. Transcende a sua natureza, cria, improvisa. O homem come alpiste, filé, gato, pombo, secretária. O homem não tem limite. E é esse excesso que o define. Ou a falta? Sim, o homem excede a sua natureza porque sua base instintiva é pobre. É por isso que ele fica sem resposta. Na falta de respostas instintivas, ele procura o seu complemento, que é a própria moral, ou o que alguns chamam de vontade, deliberação racional sobre a própria existência. Essa é a fronteira entre o desejo e a vontade em Kant. O desejo nos aproxima da animalidade, mas a vontade é o crivo racional sobre esse desejo. Quantas e quantas bundas eu já quis apalpar e não apalpei. Na contramão da teoria econômica, que nos animaliza. Mas, que fique claro, eu não sou nem de longe um discípulo de Rousseau.

A escolha de critérios éticos é um processo puramente racional?

Para esses que eu acabei de citar, tipo Rousseau e Kant, sim. Para outros, não. A escolha dos critérios éticos é uma questão afetiva. A moral é uma questão de emoção. No caso dos filósofos monistas, a razão é uma atividade do corpo como qualquer outra. Se você pensa o que você pensa é também porque você sente e o que você sente. Não há uma dicotomia entre afetos e razão. Digamos que eu tenho uma professora de hidroginástica de glúteos extraordinários e eu não passo a mão na bunda dela durante um ano. Um kantiano dirá: vitória da vontade sobre o desejo, vitória da razão sobre o corpo. Mas o que um materialista dirá? Contra o afeto do tesão, outro afeto maior venceu, que seria o medo. O medo é o afeto civilizatório por excelência. E a gente não se dá conta dele, porque ele nos acompanha o tempo todo. O tesão pela bunda é esporádico, eu percebo mais facilmente. Mas o medo, como esse já está comigo, eu não me dou conta. Eu acabo acreditando que é a razão. Mas como poderia a razão ir contra os afetos, se a razão precisa de energia para funcionar? O afeto é essa energia.

A gente racionaliza só para justificar o que sente?

Totalmente. Toda elucubração racional é meramente justificadora de uma equação afetiva da qual temos muito pouca consciência. Toda racionalização é uma tentativa de tornar os nossos afetos aceitáveis para nós e para os outros.

O senhor também já disse que a

ética só se realiza numa relação concreta. Ela muda conforme o tempo e a sociedade. Mas não há critérios éticos que já perpassaram diferentes sociedades em diferentes épocas? Algo de essencial no que chamamos de valores?

Não creio. O que você está querendo buscar é o mundo das ideias do platonismo. Quer buscar algum tipo de verdade que transcende o mundo da vida, indiscutível e absoluta. Eu tenho a mais firme convicção de que toda busca de verdades absolutas decorre de uma enorme fragilidade existencial. Como você não suporta o trânsito, essa insustentável leveza do ser, aí você busca puxar o freio de mão dos fluxos. E a busca das verdades é tranquilizadora. O que você quer é uma muleta metafísica. Eu convido você a viver a vida no mundo que é, com o corpo que tem, com os afetos que lhe são inexoráveis, e procurar amar o mundo tal como ele se apresenta.

(Envolverde/Página 22)

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