Maria Dolores de Brito Mota *
Adital – O exame dos modos de produção da morte de mulheres nos casos de feminicídio levando em conta os instrumentos e as técnicas utilizadas pelos feminicidas, bem como o aspecto do corpo feminino resultante das agressões fatais, permite ultrapassar a cena e penetrar na maquinaria do feminicídio. Essa maquinaria se fundamenta numa engrenagem em que o corpo do homem se institui como força, articulando simbioticamente a virilidade com a violência para realizar os ferimentos que matam as mulheres através de uma imolação do feminino. É possível desvelar os significados da utilização das armas empregadas e dos ferimentos efetuados com elas nos corpos das mulheres. Esse desvelamento constatou que os feminicídios se caracterizam como crimes brutais, cuja mecânica da produção da morte explicita crueldade e ódio, sendo comum o uso de mais de uma arma e golpeamentos compulsivos, que demandam o emprego de muita força física dos criminosos para realizar o suplício, ou imolação do corpo feminino.
As expressões dessa crueldade marcam o corpo das mulheres através de ferimentos medonhos, produzidos por uma variedade de armas de fogo, faca, facão, martelo, espeto, as mãos, pedra, pau entre outras, cujo uso se faz por golpes repetidos que demandam desprendimento de força física, elemento primordial da identidade masculina, ou seja, componente da masculinidade e do seu poder. Essa forma de matar martiriza, imola o corpo das mulheres para destruir expressões do feminino através da morte física, o que permite avançar o entendimento desses crimes como feminicídio.
As práticas e a significação dos corpos feminino e masculino se relacionam ao processo que Bourdieu denomina de sociodiceia masculina, processo que, para o autor, se baseia em duas operações: “ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela uma própria construção social naturalizada” (1999, p. 33)(1). Ao acionar tais operações, essa sociodiceia constrói os corpos, somatizando relações sociais de dominação que torna os homens fortes e agressivos e as mulheres sedutoras e submissas. Assim “a virilidade, como se vê, é uma noção eminentemente relacional, construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro de si mesmo”, afirma Bourdieu (idem, p. 67). De tal modo a virilidade se articula com a violência simbioticamente.
O corpo que é culturalmente construído é, portanto, um lugar prático onde o controle é exercido. Assim, o corpo é um texto da cultura, pois ao mesmo é ensinado desde o início da sua existência, sobre os costumes da cultura em que está inserido. Desta forma, a cultura se faz corpo através dos hábitos aprendidos, das normas seguidas, da rotina, ou seja, de práticas que parecem banais.
Com base em notícias sobre assassinatos de mulheres no período de 2002 a 2006, considerando as informações sobre o tipo de arma utilizada no assassinato e os ferimentos provocados, foram encontradas 96 mulheres assassinadas por armas de fogo, 82 por faca, 18 por estrangulamento, 21 envolvendo uso de pedaços de pau, 8 por pedra, 8 por espancamento, 5 por foice, 3 por enxada e 1 por tijolo, martelo, machado, facão, tábua de carne, mão de pilão. Houve ainda 2 mortes envolvendo empurrão, 3 degolamentos, 2 mutilações. Em 19 casos as vítimas forma estupradas, em 6 foram queimadas e 3 foram amarradas.
As mortes causadas por estrangulamento foram praticadas pelas próprias mãos ou por uso de objetos como corda, cadarço, alça de sutiã, entre outros materiais comuns ao espaço doméstico.
Os instrumentos usados nos crimes investigados apresentam uma prevalência do uso de armas domésticas, relacionadas ao espaço da casa e do trabalho dos feminicidas, e que necessitam de uma aproximação corporal e muito investimento de força do assassino sobre a vítima. Facas, armas brancas em geral, paus, pedras, cordas, espancamento, estrangulamento, correspondem à forma de matar em que o corpo do assassino age muito, despende mais energia do que o uso de armas de fogo. Força e ação tanto se relacionam com significados de masculinidade como podem sugerir muito ódio e vontade de destruição.
Os crimes são tão brutais que na maioria deles nunca é desferido apenas um golpe e sim vários, ficando visível que além do objetivo de realmente matar, também há o querer mortificar o corpo da vítima, exprimindo um intenso ódio pelas mulheres. As partes do corpo mais agredidas são: pescoço, cabeça, tórax e seios. Apenas cabeça, garganta e rosto representam 53% das partes corporais atingidas na produção do feminicídio. Essas são regiões corporais mais ligadas à identidade das mulheres, seu pensar, seu falar, suas feições próprias. Em seguida aparece o tórax, onde está o coração, muito atingido pelos golpes.
O corpo assassinado das mulheres evidencia-se como um corpo marcado pela vontade de repressão e destruição das partes que representam a voz e a feminilidade. A violência emerge nesses crimes de gênero como formas de controle do corpo feminino. Um controle que não apenas retira a vida, mas que destroça o corpo da mulher. Não é suficiente matar; é preciso massacrar, mutilar, deformar esse corpo. O estupro, presente em 12% dos casos noticiados, é um dado que chama atenção para o caráter de gênero dos crimes. Vale ressaltar que em um caso ocorreram ferimentos na área vaginal da mulher; e no que se refere à mutilação, em dois casos os alvos foram os seios; que, numa mulher foram extraídos; e em uma criança foram perfurados com cabo de vassoura (pelo próprio pai feminicida).
Foi possível observar que os feminicídios decorrem de situações advindas da condição social dos gêneros, ou seja, do papel e do significado social de ser mulher e de ser homem, fornecendo um conjunto racional de elementos para se aprofundar a configuração desse crime e diferenciá-lo do homicídio. A brutalidade que se constatou na produção da morte feminina nos crimes estudados, parece indicar que a dominação masculina, ainda prevalecente, opõe-se a formas de resistência e autonomia das mulheres. Essa outra forma de ser mulher, mais livre e independente, tem enfrentado a incapacidade de muitos homens que não se reconhecem como tais frente à outra forma de ser mulher, acionando contra elas uma intensa violência e ódio em nome de uma virilidade construída contra o feminino.
Nota:
(1) Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
* Socióloga, Profª da UFC, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família, NEGIF