Alice Giraldi -Da ‘Unesp Ciência’
Práticas sexuais condenadas pela Igreja Católica grassavam na Colônia. Núcleo da Unesp analisou documentos do Santo Ofício entre 1591 e 1769.
O G1 publica abaixo, com exclusividade, trechos de reportagem da 8ª edição da revista “Unesp Ciência”, sobre como a análise de documentos da Inquisição e da Companhia de Jesus ajuda a explicar as origens do comportamento sexual mais liberal dos brasileiros, apesar das sucessivas tentativas da Igreja de controlá-lo. Clique aqui para ter acesso ao conteúdo completo da edição.
No poema “Erro de português”, em que faz um lamento irônico sobre as imaginárias condições meteorológicas no momento da descoberta do Brasil, o poeta modernista Oswald de Andrade sugere que se os índios tivessem conseguido impor sua nudez aos colonizadores, tudo seria diferente. A liberdade de comportamento e a exuberante sexualidade indígenas poderiam ter prevalecido sobre o conservadorismo cristão europeu que, afinal, acabou se estabelecendo no Brasil.
No ideal antropofágico modernista, valorizar a cultura indígena sobre a do colonizador fazia sentido – e Oswald não ia perder a piada. Mas a história hoje mostra que, apesar de subjugados, os índios conseguiram deixar sua marca muito mais do que os religiosos portugueses, perplexos com aquele cenário, provavelmente gostariam.
Análises de documentos do Brasil Colônia mostram que nossa sexualidade foi, sim, marcada pela moralidade cristã, mas também por uma acentuada liberalidade, com forte influência dos costumes indígenas e africanos, além de uma participação entusiasmada do colonizador português. Tudo isso, ressalte-se, apesar das sucessivas tentativas por parte da Igreja Católica de controlar o comportamento sexual que escapasse às suas normas, por meio de ações coercitivas, punitivas e pedagógicas.
Pesquisadores do Núcleo de Estudos da Sexualidade (Nusex), grupo interdisciplinar fundado há uma década na Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp Araraquara, investigaram os textos coloniais sob o ponto de vista da educação sexual, a fim de estabelecer uma historiografia sobre o tema no Brasil.
“Éramos uma sociedade que praticava sexo com intensidade”, conta o psicólogo Paulo Rennes Marçal Ribeiro, coordenador e criador do núcleo.
As “Confissões da Inquisição”, documentos formados por livros de denúncias, confissões propriamente ditas e ratificações, trazem uma descrição minuciosa do comportamento sexual no Brasil no período de 1591 a 1769, nas capitanias da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Grão-Pará. A primeira Visita Inquisitorial, em 1591, tinha o objetivo de localizar os judeus convertidos, ou “cristãos novos”, que ainda praticavam os ritos judaicos às escondidas. “Mas, ao chegar aqui, os visitadores perceberam que o principal ponto de conflito com os dogmas da Igreja Católica era o comportamento sexual da população”, diz a pedagoga Shirley Romera dos Santos, que apresentou um estudo de iniciação científica sobre os regimentos do Santo Ofício.
Na Colônia, constataram os inquisidores, grassavam muitas das práticas sexuais condenadas pela Igreja Católica, tais como a sodomia, a bigamia, o adultério, o concubinato e a bestialidade. Pior: as transgressões sexuais envolviam os próprios membros da Igreja. Séculos antes da atual onda de acusações de pedofilia, freiras e padres desrespeitavam abertamente as normas da castidade e do celibato, por exemplo.
A Inquisição não ‘pegou’
O concubinato entre padres e índias era comum. Também era conhecida a figura do “freirático”, cavalheiro que se dedicava a seduzir freiras, empreitada que envolvia um verdadeiro ritual, com envio de presentes à religiosa em questão e doações em dinheiro ao convento em que ela vivia.
“É preciso lembrar que o celibato ainda era algo recente na Igreja Católica”, pondera Rennes. E, portanto, bastante desrespeitado em todo o mundo, mas nada como ocorria no Brasil. A norma havia sido finalmente estabelecida durante o Concílio de Trento, em 1563, depois de séculos de discussões sobre o tema. “Além disso, era frequente as mulheres irem para os conventos por questões familiares, não por escolha ou vocação, o que as tornava mais vulneráveis à sedução.”
O medo era a estratégia utilizada pela Inquisição para extrair confissões e denúncias sobre a vida privada do cidadão. Ao chegar numa determinada localidade, a equipe de visitadores afixava nas portas das casas um documento denominado monitório – uma lista dos crimes em geral, como heresias, blasfêmias, sacrilégios, não restrita aos delitos sexuais estipulados pelo Santo Ofício – e convocava a população a confessar-se, sob pena de excomunhão, caso as transgressões cometidas viessem a público posteriormente.
Era dado um prazo de 30 dias para que os fiéis confessassem seus crimes – período conhecido como “Tempo da Graça” –, depois do qual iniciava-se a fase das delações.
Apesar do terror que os inquisidores inspiravam e das humilhações perpetradas nos julgamentos públicos, os tribunais do Santo Ofício não causaram muito efeito em terras brasileiras nem atingiram a truculência que tiveram na Europa e em algumas colônias espanholas.
Os pesquisadores do Nusex observaram que as penas para os crimes sexuais, na grande maioria das vezes, eram brandas, incluindo apenas admoestações, penitências espirituais, jejum e uma segunda confissão. “Localizamos um único caso em que houve uma punição mais severa, de uma senhora que foi citada em várias confissões e delações de conteúdo sexual”, informa Rennes.
A ré era Paula de Sequeira, mulher do contador da Fazenda D’el Rei na capitania da Bahia. Paula tomou a iniciativa de ir ao Santo Ofício para confessar o “caso” mantido durante dois anos com uma mulher chamada Felipa de Sousa.