Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
O cinema tem conjugado sexo e crueldade como nunca. Não me refiro à pornografia, mas aos filmes de autor, aqueles que transportam o espectador a um outro plano, exigindo-lhe reflexão e atitude sobre o que se passa diante de seus olhos. Sequências “autorais” envolvendo sexo, perversão e violência sexual andam ganhando mais adeptos, tanto de quem está atrás das câmeras, como da plateia. A tolerância do público a certas modalidades de tabus parece maior, talvez porque os espectadores as vivenciem no cotidiano. Os cineastas não fazem mais que espelhar – e não raro refratar – a imagem que têm do mundo. Não há inocentes em tal jogo. Há um desejo das audiências e outro de agradar a estas. Assuntos que soavam insuportáveis cinquenta anos atrás hoje são vistos como rotineiros. É preciso então avançar e forçar limites. Que razão há para tamanha obsessão transgressiva? Responder que talvez seja porque não haja mais a figura da transgressão é errado. Não fosse ainda um tabu, não chamaria atenção, não lotaria as salas e não resultaria em grandes bilheterias. Todo mundo sabe que basta estampar a palavra “sexo” em um anúncio, que aparece gente interessada. E o cinema é, entre as artes, o maior campo de testes dos instintos mais básicos do espectador. Então lanço uma questão constrangedora: será que se avançaram os limites até o ponto de sexo e violência se acoplarem e assim fazer com que hoje o estupro no cinema passe por atração erótica?
Mas é preciso responder à pergunta de modo lento, para não ferir suscetibilidades. Comecemos pela história. Desde que surgiu, a arte da imagem em movimento tem mostrado cenas fortes. Vamos lembrar cenas de exibicionismo e luxúria de Intolerância (1916), do pioneiro W.D. Griffiths; corpos nus de nativos dos mares do sul em Tabu (1931), do expressionista alemão WF Murnau, e assim por diante. A quantidade de ousadia só fez aumentar em variedade, intensidade e fusão com a brutalidade. O sexo explícito ganhou status de excelência estética partir de O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, lançado em 1976. O filme retrata a obsessão de um casal por sexo, que culmina com uma cena de castração. A novidade estava em que os próprios atores faziam sexo diante das câmeras. Depois veio o canadense David Cronenberg e sua extensa galeria de tarados. Em Crash (1996), um conto sobre pessoas que atingem orgasmos em acidentes de carro, o diretor chegou a colocar a atriz cult Holly Hunter em cenas cruas e repugnantes. Agora são incontáveis os diretores que lançam mão do recurso. Nos anos 90, os diretores dinamarqueses do grupo Dogma abusaram dele. Mesmo em produções pós-Dogma isso acontece. O longa-metragem do diretor dinamarquês (e fundador do Dogma) Lars von Trier, Anticristo, de 2009, contém episódios de mutilação do clitóris da personagem principal, interpretada pela atriz e cantora Charlotte Gainsbourgh, e as habituais sequências “líricas” de cópulas reais – no caso desempenhadas por dublês.
Se o sexo explícito teve seu tempo (que pode voltar, obviamente), a moda atual é o estupro. Até aí nenhuma novidade. Fiz uma busca no site IMDB com a palavra “rape” (estupro em inglês) e o resultado foi 2711 títulos. O número de filmes com cenas de estupro (inclusive pornôs) começa a se multiplicar a partir dos primeiros anos da liberação sexual, na primeira metade da década de 60. Houve uma mudança de mentalidade a partir de então. Não vou arrolar dezenas de longas-metragens de arte que investem em cenas do tipo. Os estupradores começam até a ganhar certa simpatia na filmografia recente. No ano passado, a história da violação de uma adolescente foi às telas na adaptação do diretor Peter Jackson do best-seller Uma vida interrompida (Lovely Bones), de Alice Sebold – e quase rendeu ao ator que fez o estuprador, Stanley Tucci, o Oscar de coadjuvante. A peculiaridade da trama está na forma como ela é contada, pela própria vítima, diretamente do limbo. O que significa que a audiência tem acesso a detalhes ainda mais escabrosos do crime. E as pulsões de amor e morte são tocadas por eles. Vou repetir o argumento de Walter Benjamin: no escuro, cada espectador se projeta na imagem projetada na tela. Assim, o processo de identificação é incontornável. Por isso, Benjamin definiu o cinema como “arte psicanalítica”. Na situação simulada do estupro, somos a um tempo vítima e agressor. Ocupamos os corpos e as almas dos dois lados do ato.
Ultimamente, o gênero estupro seguido por morte tem merecido maior atenção dos diretores. Quero mencionar dois filmes de suspense. Um faz boa carreira nos cinemas e outro entra em cartaz na semana que vem: o argentino O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, e a produção dinamarquesa Os homens que não amavam as mulheres, do diretor Niels Arden Oplev, suspense baseado no romance homônimo do sueco Stieg Larrson, best-seller mundial.
São produções aparentemente díspares. Apesar de uma ser sul-americana e outra nórdica, ambas guardam pelo menos quatro aspectos em comum, além de abordar o estupro de uma forma intrigante.
Em primeiro lugar, são enredos de casos criminais arquivados há mais de 25 anos. No filme argentino, a cena se passa em Buenos Aires no ano 2000. O investigador aposentado Benjamin Esposito (Ricar
do Darín) se encontra com sua antiga chefe (e paixão), a juíza Irene Hastings (Soledad Villamil) para tentar reabrir um caso acontecido em 1974: a morte de Liliana Colotto (Carla Quevedo), uma jovem de 23 anos seviciada, violada e morta em sua casa. O filme dinamarquês, ambientado em Estocolmo em 2006, conta as peripécias de um jornalista investigativo de esquerda, Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), é chamado por um rico empresário Henry Vanger (Sven-Bertil Taube) para investigar o desaparecimento de sua sobrinha Cecilia Vanger (Marika Lagercrantz), de 16 anos, durante uma parada de Dias dos Namorados numa ilha sueca em 1966. Blomkvist se une à hacker punk Lisbeth Salander (Noomi Rapace) e descobre que a desaparição da menina é relacionada com uma série de estupros ocorridos nas redondezas num período de 20 anos.
O pano de fundo político responde pelo segundo aspecto convergente. Ambos os casos são acobertados e se relacionam a regimes ditatoriais. Melhor não entrar em detalhes para não estragar a surpresa. Mas basta dizer que os estupros estão ligados à impunidade de criminosos vinculados a determinada conjuntura de poder. A política será determinante para a resolução dos casos. Campanella usa o caso policial para elaborar uma metáfora da Argentina, um país que só depois de muitos anos conseguiu superar o trauma da guerra suja, que levou milhares de inocentes à morte. Já Niels Arden Oplev se vale dos crimes seriais acobertados para mostrar que um país supostamente resolvido como a Suécia oculta uma sociedade doentia, capaz dos atos mais atrozes.
A terceira coincidência repousa na crise da meia-idade e de carreira por que passam os dois protagonista: tanto Esposito como Blomkvist se encontram em fim de carreira e, mesmo assim, continuam obcecados pelo desvendamento de seus respectivos mistérios. Tanto um como outro anseiam pela redenção que a resolução de um enigma pode conter. E os dois são apaixonados por mulheres problemáticas. A juíza é rica e está comprometida com um empresário, e deixa Esposito partir, numa cena melodramática, passada em uma estação de trem. Blomkvyst é praticamente estuprado na cama por Lisbeth, e se encanta por ela – que, aliás, já havia sido estuprada pelo padrasto e pelo tutor, e se vingou ateando fogo ao carro daquele e torturando este.
Finalmente, os dois roteiros são unidos pelo tema do estupro seguido por morte. Em O segredo de seus olhos, o foco está na beleza de Liliana, apesar dos ferimentos profundos deixados pelo assassino. A câmera passeia com volúpia pelo corpo nu violado e ensanguentado, até dar um close up nos olhos vidrados da morta, olhos enormes e… sonhadores. São os olhos do cadáver e do possível criminoso que levam Esposito, fascinado pela beldade morta, a começar a investigação. Em Os homens que não amavam as mulheres, os olhos abertos dos cadáveres colecionados pelos criminosos também são mostrados em detalhe. O filme dinamarquês é pródigo nos requintes sádicos. Os assassinatos são cometidos como rituais satânicos, repletos de símbolos e citações bíblicas. Na trama sueca, não há espaço para sentimentalismo.
Por fim, os filmes dramatizam os comportamentos macabros e perturbadores. Os estupros que são confessados pelos criminosos como momentos de iluminação e triunfo. Como se obrigar alguém a fazer sexo e depois matar representasse a realização de antigos anseios. O assassino de Liliana confessa o crime diante do investigador e da juíza de uma forma inusitada: exibindo o pênis, ele diz que obteve o maior prazer de sua vida ao fazer sexo e assassinar Liliana Colotto. Uma experiência de suprema transgressão, que também encanta o estuprador do filme sueco. “Estuprar é uma experiência fantástica”, diz ele, enquanto começa a enforcar Blomqvyst. “Não existe nada igual a matá-las. O que mais gosto é o olhar delas no momento em que se decepcionam, ao saber que não vou salvá-las, que elas vão morrer. É um instante maravilhoso.”
Por mais que resista por saber que se trata de ficções, o espectador acaba se deixando levar pelo enredo e, talvez, involuntariamente, conduzido a uma situação-limite que poderia ser real. É o que Aristóteles denomina catarse, de purgação dos desejos por meio de um mecanismo de transferência, para usar um termo mais moderno. Durante o processo, sacrificamos, somos sacrificados e, por último, atingimos a purificação. A operação teria um fundamento pedagógico, e resultaria em bom comportamento social. Não estou tão certo disso. Entre o mistério que se apresenta e a possível remissão dos pecados, o caminho me parece tempestuoso. Entre um e outra, existe o apelo da transgressão. O cinema atual induz o espectador a fantasias proibidas, e entre elas tem enfatizado a do estupro. Ora, o estupro como atração erótica é uma distorção. Para mim, estupro é sexo ruim, mesmo em fantasia. Não há tema vedado à arte, se ela é grande. Agora, porém, os diretores têm confundido a exploração do interdito com excelência estética. O resultado só pode ser o rebaixamento dos sentidos – e da reflexão.