Por Thayz Athayde*
Publicado originalmente no site da ADUA – Associação dos Docentes da Universidade Federal do Amazonas: http://www.adua.org.br/artigos.php?cod=269
O corpo das mulheres é atravessado de histórias. Parece que, ainda que algumas questões tenham sido discutidas e para algumas pessoas até superadas, o corpo das mulheres carrega um grito de luta em que precisamos dizer quase diariamente: eu sou o que quiser ser e não o que vocês gostariam que fosse. Em muitos momentos precisamos afirmar, reafirmar, provar, gritar, lutar e dizer várias vezes a mesma coisa: quero falar quem eu sou a partir do que eu entendo por ser mulher, do que coletivamente, nós mulheres, entendemos o que é ser mulher. Queremos falar a partir da nossa verdade e de nossas vontades, não de um ponto de vista de homens brancos, cisgêneros, heterossexuais e ricos, que foram quem sempre falaram quem são as mulheres, inclusive apontado que somos um “mistério” a ser desvendado.
Ser mulher e ser escutada é uma tarefa difícil e o movimento feminista conta a história do quanto há uma recusa em ouvir as mulheres em vários aspectos. Nesse sentido, pode-se pensar na mitologia grega e a história de Cassandra. A mitologia conta que ela foi uma grande profetisa que conseguia prever muitos acontecimentos. Contudo, ao recusar o apelo amoroso de Apolo, ele lhe lançou uma maldição para que ninguém acreditasse em suas visões e profecias. Com isso, a sua cidade foi destruída, pois ao falar do que iria acontecer, ninguém acreditou em Cassandra.
A história de Cassandra pode parecer apenas mais um conto da mitologia grega, mas para as mulheres é uma história contada desde sempre: ao mesmo tempo que há uma grande recusa em nos ouvir, também se produz argumentos para não acreditar nas mulheres. No campo psi (psicologia e psiquiatria), por exemplo, se vê a construção do “mistério feminino”, algo que não se sabe explicar e, por isso, merece atenção e pesquisa. Os estudos feitos através do campo psi se apoiam em uma ideia de neutralidade científica, mas a noção pela qual descreveram e estudaram as mulheres foi a partir de um ponto de vista masculino, branco, cisgênero, heterossexual e de classe média alta. E para as mulheres que ousavam discordar do que era dito sobre seus corpos e suas subjetividades era dado o título de louca, de histérica.
A “maldição” de Cassandra foi se modificando com o tempo: as mulheres não serão ouvidas porque são mentirosas e traiçoeiras, porque são loucas e histéricas, porque querem tudo, querem demais, porque são exageradas quando se trata de lutar por direitos. Dentro dessa lógica, é preciso destacar que não somos desacreditadas apenas individualmente como mulheres, mas também quando ecoamos juntas nossa própria verdade, nossas análises políticas, as violências contra nossos corpos. A “maldição” de Cassandra de não ser escutada aparece também quando estamos juntas. As mulheres seguem ecoando suas verdades através do movimento feminista, mas não são ouvidas pelas mesmas justificativas: loucas, exageradas, mentirosas, etc.
08 de março é dia de luta porque nos reunimos para falar exatamente o que tentamos gritar todos os dias: falar nosso ponto de vista sobre nossos corpos, nossa subjetividade, as violências que nos atravessam e nossa resistência. É quando podemos falar e ser ouvidas como mulheres em toda sua diversidade. Porque é a partir da diferença em todas as formas de ser mulher que também podemos nos ouvir e construir nossa identidade coletivamente.
08 de março é um dia de luta porque é quando as mulheres se reúnem e gritam uníssonas: nós continuaremos gritando ainda que nos chamem de loucas, continuaremos apontando os comportamentos machistas, racistas, LGBTfóbicos ainda que nos chamem de exageradas. Continuaremos construindo nosso saber por entendermos que temos algo a dizer.
*Thayz Athayde é psicóloga e psicanalista, doutoranda, professora e colaboradora da Universidade Livre Feminista.