Marielle representou um futuro que queríamos ver realizado. Ela era teoria e prática. Por Carla Batista*, coluna Mulheres em Movimento, Folha de Pernambuco
Para relembrar: o Fórum Social Mundial (FSM) surgiu em 2001 como uma iniciativa de organizações e movimentos sociais em contraposição ao neoliberalismo simbolizado pelo Fórum Econômico Mundial (Davos). As primeiras edições aconteceram em Porto Alegre (RS). Daí o Fórum seguiu para outros países e continentes. Voltou ao Brasil neste março de 2018. Veio para Salvador, a cidade com maior população negra do País.
A Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Estadual da Bahia (Uneb), o Instituto Federal da Bahia (IFBA) e o bairro de Itapoã formaram um amplo, descentralizado, colorido, criativo e amigável território, que contou também com acampamentos de quilombolas, indígenas e jovens. As discussões abrangeram as mais diversas lutas pela transformação. A academia acolheu e se aproximou ainda mais dos movimentos sociais. Como afirmou o professor da Universidade de Brasília (UNB) Luís Felipe Miguel, a universidade que sempre esteve a serviço das empresas, formando mão de obra, pode estar também a serviço dos movimentos sociais, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa, menos violenta. Isso não é fugir ao seu
papel.
No balanço realizado pelo Conselho Internacional do FSM, foi levantado o número de 80 mil pessoas inscritas. As atividades, 2.200, corresponderam ao maior número de todos os Fóruns realizados até hoje. A passeata de abertura, que se iniciou no Campo Grande e seguiu para a Praça Castro Alves, foi bastante longa, eu vi.
Na manhã do dia 15, quando, ainda atônita com as notícias da noite anterior sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, percorri de ponta a ponta o campus da UFBA – Ondina, em todos os pequenos grupos de pessoas pelos quais passei, em todas as tendas de debates ouvia ”Marielle! Marielle! Marielle!”. Palavras de espanto e de revolta que estiveram na origem de mobilizações que começaram a pipocar em todos os lugares, não só no Brasil. Ações que buscavam transformar o consolo da dor coletiva, o luto, em reação e luta.
A Assembleia das Mulheres, que recebeu o nome de Marielle Franco, contou com 5 a 10 mil participantes. Foi realizada na manhã do dia 16 de março em praça aberta: o Terreiro de Jesus no Pelourinho. Nenhuma outra atividade foi inscrita nesse horário, contribuindo para que o maior número das participantes estivesse presente. Veja abaixo o documento síntese da Assembleia. Foram aprovadas 3 moções: por Marielle, pelas curdas e pela Venezuela.
Fórum Social Mundial 2018
Assembleia Mundial das Mulheres – Marielle Franco FSM 2018, Salvador, 16 de março de 2018
Somos mulheres lésbicas, trans, bissexuais, não binárias, de todo o planeta, sem distinção, somos forças de resistência a todas as formas de opressão, desigualdades, discriminação, e estamos dispostas a promover ações coletivas para frear este processo histórico de dominação violenta que nos subjuga. Somos negras, indígenas, místicas, brancas e de etnias não brancas que enfrentamos o racismo como fator estruturante de nossas vidas e da sociedade e exigimos que se levantem todas as vozes, compromisso e ações para por fim a uma realidade mundial de violência e invisibilidade que nos impõem. As trabalhadoras, artistas, donas de casa, estudantes, acadêmicas, jovens, do campo, das cidades, da floresta, com deficiência, todas, sem distinção, somos vítimas de um sistema racista, patriarcal, capitalista e misógino e estamos determinadas a juntar nossas forças e nos lançarmos coletivamente para mudar os sistemas políticos e econômicos que dominam o mundo. Pela justiça climática. Somos parte da natureza e não donas dela. Reafirmamos a urgência de reunir todas as nossas lutas por uma emancipação econômica, social, cultural, livres de violência. Contra a misoginia, silencia- mento e invisibilidade. Contra o patriarcado e todas as formas de violência. A Assembleia Mundial de Mulheres propõe os seguintes pontos inegociáveis em nossa luta para uma Agenda internacionalista e inadiável. Pontos: 1. Pelo pleno reconhecimento do trabalho produtivo e reprodutivo. Todas somos trabalhadoras, não importa se em casa, no mercado ou na comunidade. Pela igualdade de oportunidades e igualdade salarial, contra o assédio sexual e moral no trabalho, pelo pleno reconhecimento do trabalho de cuidado remunerado, exigimos políticas públicas para garanti-lo. 2. Pelo fim dos feminicídios, trans feminicídios e de todas as formas de violência, sejam sexuais, físicas, simbólicas, psicológicas, domésticas, trabalhistas, obstétricas, patrimoniais e epistêmica praticadas no âmbito
público, privado e no ativismo. 3. Pelo nosso direito de decidir sobre nossos corpos, sentimentos e pensamentos, com autonomia sem interferências do Estado, dos fundamentalismos religiosos e do poder econômico. 4. Por nossa emancipação real e substantiva e acesso ao poder político. 5. Pelo fim da utilização de nossos corpos como arma de guerra, pelo fim da perseguição e assassinato das defensoras de direitos humanos. 6. Pelo nosso acesso e de todas as pessoas à educação universal, emancipadora, transformadora, libertária, não racista e não sexista. 7. Contra o racismo, a xenofobia, o genocídio e o fim do encarceramento das pessoas negras, indígenas, migrantes e pobres. 8. Pelo reconhecimento de nossa identidade e expressão de gênero auto percebidas. Pela plena garantia de nossos direitos, fim da discriminação e da violência por orientação sexual, identidade e expressão de gênero. 9. Pelo desmantelamento da estrutura patriarcal dos meios de comunicação, pelo fim da mercantilizarão e hipersexualização de nossa imagem. Nossa invisibilidade nestes meios contribui para o silenciamento de nossas lutas. 10. Contra o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo que nos exploram e expropriam ao redor do planeta, cujas disputas pelo mercado e fontes geram guerras, destruição, violências e mortes que atentam contra nós. Essa Assembleia expressa: Repúdio ao assassinato de Marielle Franco, feminista, negra, lésbica, vereadora do Rio de Janeiro que denunciou a repressão policial nas favelas do Rio frente aos crescentes processos de militarização
* Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).
Fonte:http://www.folhape.com.br/noticias/noticias/mulheres-em-movimento/2018/03/21/NWS,62575,70,1055,NOTICIAS,2190-TRANSFORMAR-LUTO-LUTA-MARIELLEVIVE.aspx