Premiada em importantes festivais na América Latina, com os títulos “Sete Corações” (2015) e “Alumia” (2009), diretora e roteirista finaliza “Câmara de Espelhos”, após três anos de imersão no material filmado. Em setembro, filme faz sua estreia nacional em sessão especial hors concours no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Construída dentro de uma caixa preta, obra recorta o discurso masculino banal do dia-a-dia e expõe as violências sutis às quais são submetidas a mulher e sua imagem espelhada pela sociedade. Primeiro longa-documentário autoral de Dea Ferraz, a película é produzida pela Parêa Filmes, Ateliê Produções e Alumia Conteúdo em associação com a Janela Projetos por meio de incentivo do Funcultura/Governo de Pernambuco e recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) da Ancine e do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE).
Qual a imagem social da mulher? Como o mundo constrói a identidade feminina? Quem é a mulher num mundo historicamente patriarcal e machista? Partindo dessas premissas e dialogando fortemente como o momento sócio-político brasileiro, “Câmara de Espelhos” joga luz nos discursos subliminares das rodas masculinas e reposiciona a violência implícita que as palavras carregam. Depois de “Sete Corações” (2015), o novo longa-documentário da diretora recifense Dea Ferraz é o que ela considera sua obra mais autoral até aqui.
Resultado de uma pesquisa sobre os filmes-dispositivo e a tradição da linguagem documental, “Câmara de Espelhos” nasce de um anseio pessoal da realizadora: questionar lugares de violência e invisibilidade nos quais as mulheres vivem diante do consumo de imagens, inclusive delas mesmas. Funcionando por meio de um dispositivo específico, a de uma caixa preta mal acabada com regras e modus operandi constantes, o longa-documentário propõe a reflexão a partir de uma imagem-símbolo que desvela sentidos, falas e microespaços de poder.”‘Câmara de Espelhos’, para mim, é a possibilidade de jogar luz nesse discurso subliminar, aparentemente banal, que parece invisível e que tantas vezes deixamos passar porque ‘não é tão grave’, como dizem alguns. Com o filme, tento dizer é gravíssimo”, afirma Dea Ferraz, que divide o roteiro com a montadora Joana Collier.
Convidados a participar de um “jogo” em que, espontaneamente, emitem suas opiniões e reflexões dentro de uma sala de estar rodeada por uma caixa preta, ao todo 14 homens, divididos em dois grupos, participam como voluntários de uma conversa informal que remete a uma mesa de bar tipicamente masculina, também com suas regras, formatos e discursos pré-estabelecidos.
A partir da relação “personagem-personagem”, sem a participação efetiva da diretora e mediante apenas a instrução sonora, os homens interagem entre si e comentam a exibição de vídeos sobre os mais diversos temas, desde aborto, passando por sexo e casamento até violência. Graças ao aspecto aberto do dispositivo, o doc. trouxe nuances e expectativas inesperadas. “Não há nenhum contato dos homens com a direção. E o fato de termos as câmeras “escondidas” – eles não sabiam a posição específica de cada câmera, mas sabiam que estavam sendo filmados – causou um deslocamento de atuação que gosto muito. Eles atuam entre si, uns para os outros, mais do que para as câmeras objetivamente”, antecipa Dea. “Não imaginei que o documentário seria tão violento. Na verdade, imaginava que seria difícil trazer à tona esse discurso naturalizado do machismo para dentro de uma sala cheia de câmeras e com o consentimento dos personagens, mas o que vi e vivi foi muito mais forte do que poderia imaginar”, conta.
Sinopse e processo do filme-dispositivo
“Câmara de Espelhos” recorta a mesa de bar do cotidiano, o universo masculino, joga dentro de uma caixa e nos faz olhar para os discursos banais do dia-dia, desfilando a violência que caminha submersa. Opiniões são reveladas diante do espelho. O que nos dizem da imagem feminina que se apresenta? Mais do que isso, o filme parece perguntar: e você? Onde está nesse “jogo”? Dentro, fora ou no limite da caixa?
A seleção dos participantes deste filme-dispositivo foi feita a partir de um anúncio de jornal, convocando interessados em expor suas opiniões e reflexões na tela do cinema, de modo que eles estavam cientes de que estariam dentro de um filme. O perfil exigido era de homens com faixa etária de 18 a 80 anos, com boa capacidade de expressão e que morassem na Região Metropolitana do Recife.
Antes das gravações, 60 homens foram pré-selecionados para entrevistas individuais. Sob orientação de Dea Ferraz e conduzidos pelos assistentes de direção Nathalia Gomes e Leo Ferrario, tais encontros foram filmados e tinham o objetivo de fazer um recorte sob dois aspectos centrais. O primeiro, mais objetivo, diz respeito à diversidade social; e um outro recorte mais subjetivo e psicanalítico, levantando informações sobre relações familiares e histórias pessoais.
O dispositivo é composto basicamente por três elementos: a caixa em si, os vídeos, e a escolha dos personagens. Os vídeos funcionam não somente como estímulos para o debate interno, como também podem ser vistos como o mundo externo que entra pela sala. A pesquisa das imagens midiáticas exibidas (material de Youtube, novelas, filmes, reportagens jornalísticas, programas evangélicos etc) foi realizada durante dois meses, sob a coordenação e supervisão da professora Tatyane Guimarães Oliveira, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A exibição dos vídeos nas filmagens foi dividida em temas: sexualidade e corpo; religião, casamento e domesticidade; humor; violência. Ao todo, foram seis sessões com cada grupo de homens. Cada sessão durou cerca de 1h40.
O papel das vozes femininas, que “atuam” dentro do dispositivo sem presença corpórea, sobretudo nos momentos em que a tela é invadida pelo escuro absoluto, é outro aspecto importante dentro do longa. Uma das que conduzem os participantes rumo à caixa preta e ao dispositivo, sem aparecer ou revelar o rosto, é a atriz e bailarina Bella Maia, explicitando tanto aos personagens quanto ao espectador, que existem mulheres no entorno da caixa. “Pensar minha presença na caixa foi a tentativa de encontro comigo mesma e com o que quero falar. Perceber-me em fendas, rasgos, invisível mas não ausente, é perceber-me como muitas. Como o próprio feminino que está sempre à margem da sociedade, nas fendas do mundo, longe dos olhos do machismo”, justifica a diretora.
Sobre a diretora Dea Ferraz
Dea Ferraz é diretora e roteirista, formada em jornalismo e com especialização em documentários na Escuela Internacional de Cine y TV (EICTV), de San Antonio de los Baños – Cuba. Há quase 15 anos, pesquisa a linguagem documental, focando seu estudo atualmente nos chamados filmes-dispositivos. É dessa prospecção que nasce Câmara de Espelhos e é a partir dela que novas buscas e inquietações se estabelecem. Realizadora de curtas, médias e um longa-metragem (“Sete Corações”), Dea acumula prêmios em vários festivais no Brasil e no exterior, incluindo México, Argentina, Cuba, entre outros. “Alumia” (2009), seu primeiro média metragem, percorreu a América Latina e sagrou-se vencedor nos festivais de Santiago Alvarez, em Santiago de Cuba (Cuba); e no Contra el Silencio todas las Voces, encontro hispano-americano de cinema e vídeo-documentários durante a 5ª edição do DOCSDF (México). Em 2013, a diretora recebeu o convite para dirigir “Sete Corações” (2015), longa-metragem documental sobre os mestres de frevo vivos. Depois de participar do Janela Internacional de Cinema, MIMO e In-Edit, entrou em cartaz no Recife e também foi exibido na Rede Globo Nordeste, atingindo a marca de 820 mil espectadores. Agora, em 2016, Dea Ferraz lança seu primeiro longa-metragem autoral: Câmara de Espelhos, fruto de uma longa pesquisa.