A historiadora da Unicamp diz que a luta feminina ganhou novas questões
SERGIO GARCIA para ISTOÉ (15/11/2015)
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A historiadora paulista Margareth Rago, 65 anos, esquadrinha o movimento feminista há mais de três décadas e encara com otimismo a torrente de manifestações que tem varrido o país com uma pauta tão cara às mulheres. Professora da Unicamp, Margareth se diz surpresa com a adesão maciça à campanha #primeiroassedio, em que as internautas relatam abusos sexuais que sofreram. Afirma que esses relatos a puseram a pensar em questões que, antes, não identificava como motivos para luta feminina. “É muito legal as jovens estarem exigindo o direito de não ter que amarrar o moletom na cintura para não serem chamadas de ‘boazudas’. Eu me acostumei a ter um moletom na bunda para disfarçar”, diz. A historiadora diz que o feminismo não é perfeito, mas é um caminho para criar novos modos de existência “mais éticos, mais livres, mais verdadeiros e mais justos”. “Uma pensadora alemã do início do século passado disse que o feminismo não veio para derrubar os homens, mas sim para socorrê-los, porque os heróis estão cansados. Ela está certa.”
ÉPOCA – Como avalia essa avalanche de manifestações de cunho feminista, como as campanhas #primeiroassédio e as passeatas contra o Projeto de Lei 5.069, que dificulta o aborto?
Margareth Rago – O feminismo está na moda, virou pop. Como historiadora, vou explicar que são dois séculos de luta. O Brasil está em turbulência, e não é de hoje. A luta contra a ditadura militar mobilizou meio mundo, fez questionar as instituições e veio junto com uma modernização impressionante. Na segunda metade da década de 70, o feminismo se articulou timidamente por aqui, e explodiu mesmo nos anos 80. De lá pra cá, só fez crescer. Agora estamos colhendo as flores.
ÉPOCA – Por que as novas gerações despertaram para a causa, como mostram os recentes protestos nas ruas, apinhados de jovens?
Margareth – Não tem garotada só no feminismo. Tem no anarquismo, nos movimentos sociais. Nos protestos de junho de 2013 só havia moçada. São as filhas e netas, que já foram criadas em outro patamar. As políticas públicas da última década alteraram significativamente a situação dos jovens. Houve uma transformação social e cultural e eles estão no mundo com uma rapidez muito maior que a de minha geração. É interessante. Ao mesmo tempo em que a gente tem a sensação de que o país se despolitizou, no caso de lutas específicas, como pelo aborto e contra a homofobia, as coisas cresceram muito. O feminismo renasce no Brasil na segunda metade dos anos 70 como um movimento contra a ditadura. Hoje ele está mais pragmático e sem aquele discurso ideológico.
ÉPOCA – Há semelhanças entre os movimentos de 2013, que inicialmente pedia o passe livre, e o de agora?
Margareth – Com certeza, sim. Muitos grupos feministas não se limitam à causa. Eles são feministas e ecológicos, feministas e veganos, ou ligados à luta pela descriminalização da maconha. A coisa é mais ampla entre os jovens, que tendem a ser mais transversais. É muito interessante nesses grupos jovens a crítica, internamente, da questão das relações de gênero. Outra coisa que está entrando é a luta dos transgêneros. E é uma briga também anti-identitária, que é muito legal, porque a identidade sufoca. A noção de identidade vem do século XIX, num mundo urbano e industrial, surgindo a partir da preocupação de identificar o indivíduo na multidão.
ÉPOCA – Em 2013 as manifestações começaram por causa do passe livre e o discurso se dispersou. Este movimento atual tem o discurso mais unificado?
Margareth – Sim, o que não quer dizer que não existam conflitos. O feminismo é um movimento que se articula mais facilmente. Não sei identificar bem a dinâmica, mas ajuda o fato de ser um movimento, não ter um partido. Tem uma feminista alemã do início do século que diz que o feminismo não veio para derrubar os homens, ele veio para socorrê-los, porque os heróis estão cansados. Às vezes penso que ela está muito certa, porque nosso mundo está falido. O mundo começou a envelhecer rapidamente, as relações estão falidas, os modelos estão falidos, e nesse momento a cultura feminina ganha espaço.
ÉPOCA – Uma das marcas das manifestações recentes é o bom humor. Trata-se de uma característica nova do movimento?
Margareth – Não. Já na década de 90, as artistas feministas eram muito engraçadas. Mas ficou a imagem do feminismo sério, ascético. O que aconteceu foi que o bom humor se acentuou. Veja a Marcha das Vadias. Uma estudante bonita que tira a roupa e diz que é vadia quebra completamente o código. Gosto muito desse tipo de movimento, bem-humorado. O mundo é muito chato, temos que alegrá-lo.
ÉPOCA – A senhora se surpreendeu com a quantidade de depoimentos (quase 100 mil) reunidos na campanha sobre o primeiro assédio, que teve origem nos comentários de cunho sexual feitos nas redes sociais sobre uma garota de 12 anos que participava de um programa de gastronomia?
Margareth – Sim, mas não só isso. (na terça-feira passada) Eu saí de casa para ver uma peça chamada Feminicídio, e no metrô ouvia-se um alerta contra o assédio sexual e homofobia. Voltei para casa e na televisão havia uma enxurrada de discussão sobre assédio e estupro. Fiquei impressionada. Gente, o mundo está feminista e eu não tinha percebido? Há mesmo que se mudar a cultural patriarcal e machista. Quando eu tinha a idade dessa menina e acontecia isso, a vítima ficava paralisada, escondida debaixo da cama. Hoje elas apitam e põem a boca no mundo. Quem sabe os homens aprendem e se reeducam. Outro dia, numa aula, uma moça disse que conhece mulheres que ficam felizes quando ouvem um “boazuda” na rua. É interessante isso também, senão ficaremos iguais aos Estados Unidos, onde um homem te convida para tomar um café e você entende que ele quer te estuprar. Essa lógica punitiva e normativa é complicada. Daqui a pouco o erotismo é impossibilitado. Nós não somos uma sociedade puritana, mas corremos o risco de nos tornar com a americanização tão profunda na vida de todo o planeta. Aqui temos a cultura do corpo, da beleza. Ainda bem, senão é melhor viver em outro mundo.
ÉPOCA – Podemos dizer que o feminismo se espraia por todas as classes e deixou de ser coisa de gueto?
Margareth – Sim, há muito tempo. No início, o movimento estava restrito a jovens universitárias de esquerda, mulheres de classe média intelectualizadas. Nos anos 80, elas entraram nos sindicatos, nos partidos, nas universidades. Aí caiu a ficha e a coisa pegou. Não existia uma linguagem feminina própria. A mulher não sabia do seu corpo, era educada para ter filhos. Mas e se ela não quisesse casar nem engravidar? Vejo o feminismo como uma luta para criar novos modos de existência, modos mais éticos, mais livres, mais verdadeiros e mais justos. Não é só uma luta pelo direito de voto, de aborto. Ele denuncia a cultura sexista, machista, branca e injusta. Pode ser que no futuro não seja assim, mas até o momento meninos e meninas são educados de maneira muito diferente.
ÉPOCA – A senhora concorda com a máxima que, se os homens engravidassem, o aborto seria uma lei universal?
Margareth – Não tenho dúvida nenhuma. O mundo é masculino, branco, heterossexual e burguês. Não acho que o feminismo seja a perfeição. Há feministas autoritárias, machistas, neoliberais, mas em princípio o feminismo coloca outras buscas, amplia o debate e toca fundo na questão da verdade e da ética, de produzir outros seres humanos, porque esses não deram certo. É muito legal o fato de as jovens estarem exigindo o direito de não ter que amarrar o moletom na cintura para não serem chamadas de “boazudas”. Eu me acostumei a ter um moletom na bunda para disfarçar. Nem passava pela minha cabeça que isso poderia ser um motivo de luta. Como se vê, são muitos os ganhos do feminismo.