Há algumas semanas, circulou pelas redes sociais uma imagem que denunciava que as mulheres de penitenciárias femininas usavam miolo de pão como absorventes internos, motivada pela divulgação do livro “Presos que menstruam”, da jornalista Nana Queiroz. A imagem causou grande comoção e diversas campanhas para arrecadação de absorventes foram feitas, embora a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) do Rio de Janeiro tenha recusado as doações. Com o intuito de aprofundar a questão, pedimos autorização para publicar um post da Natália Corazza Padovani sobre o assunto, e ela gentilmente nos enviou o texto a seguir. Não se trata de um posicionamento da Universidade Livre Feminista sobre o tema, e sim de uma contribuição para o debate.
Desde que saiu, há algumas semanas, a notícia na internet sobre o lançamento do livro de Nana Queiróz, “Presos que menstruam” pela editora Record, que eu tenho recebido e-mails, convites e questionamentos sobre a menstruação das presas. Mais especificamente, sobre a suposta prática de, nas penitenciárias femininas de São Paulo, presas usarem miolo de pão no lugar do absorvente dada a ausência desse artigo de higiene pessoal nas prisões. Depois de, durante longos anos, eu ter de escutar (em silêncio) sobre o fatídico miolo de pão que impulsiona e fomenta reuniões abertas nas Assembleias Legislativas e reuniões de pessoas importantes, como advogadas e promotoras, interessadas na situação das “mulheres no cárcere”, achei, ingenuamente, que o pão se esfarelaria e poderíamos começar a olhar mais seriamente para como questões de gênero são fundantes das instituições prisionais, assim como de todos os processos de estado.
Mas então, hoje pela manhã, recebi um e-mail aflito de uma aluna muito interessada no tema. Ela leu sobre o já mofado miolo de pão e, claro, ficou revoltada. Com razão! Quem não ficaria?!
Pois bem, para arrefecer suas preocupações sobre a menstruação das presas, escrevi a carta que reproduzo, parcialmente, aqui:
Querida,
O miolo de pão, mais do que uma realidade nas prisões femininas, mais do que uma questão central na vida das pessoas presas em penitenciárias femininas, é um jargão, um argumento político utilizado largamente por parte das pessoas interessadas nos “direitos das mulheres presas”. Ele decorre de um acontecimento real quando, anos atrás, uma mulher em situação de prisão estava no castigo, menstruada e, sem acesso a absorventes, terminou por usar miolo de pão. Uma situação de tortura que, de outro modo, tem sido invisibilizada pelos usos descontextualizados do fatídico “miolo de pão” feitos por muitos daqueles que defendem os direitos das mulheres presas. Afinal, ao lançar todo o foca para o miolo de pão e a ausência de absorventes, joga-se sombra para as situações de castigo a que podem estar submetidos mulheres menstruadas, mas também, homens esmerdeados, travestis estupradas com seus cabelos raspados.
Eu também tenho interesse e defendo duramente, se não com muito afinco afetivo, inclusive, os “direitos das mulheres presas”. Mas veja bem, do mesmo modo que existem muitos feminismos (e não apenas um feminismo), existem muitas formas de luta e de compreensão sobre quais são os interesses das mulheres, ou das pessoas, presas em instituições penais femininas. Para você entender um pouco melhor para onde vai o meu argumento lembro que, dentre os movimentos feministas, existem posições que defendem que a pornografia e o trabalho sexual é uma forma de objetificação do corpo da mulher e que esta prática decorre de uma ampla estrutura patriarcal de opressão às mulheres. Por outro lado, existe uma outra vertente que compreende que em todas as relações humanas, afetivas, amorosas e de amizade, inclusive, objetificamos uns aos outros e que isso não significa dizer que tal objetificação não produza relações afetivas verdadeiras e profundas. Afinal, as relações são produzidas por trocas de interesses, afetos e dinheiro, todas elas, não só as que envolvem pornografia e mercado do sexo. Mais do que isso, essa linha do feminismo entende que prostituição e pornografia não são práticas de opressão, mas sim de libertação: dos usos livres do corpo. De mesmo modo, compreende que os posicionamentos feministas que criminalizam a prostituição alimentam diversas formas de perseguição a mulheres (e homens) de determinadas classes sociais, raças, orientações sexuais… Parafraseando uma famosa teórica feminista, a cruzada contra a prostituição alimenta as guerras dos EUA contra o Iraque, afinal, por trás de todo o argumento da liberdade democrática, está a ideia de que os “homens brancos norte-americanos devem salvar as pobres mulheres morenas dos homens morenos”.
Sei que pode parecer que eu estou fugindo do tema de nossa conversa, mas não estou. Os exemplos acima são somente para ilustrar que, assim como os feminismos são marcados por acirradas diferenças ideológicas, as lutas pelos direitos de pessoas presas em penitenciárias femininas também são marcadas por desacordos ideológicos e políticos. Confesso que em mais de dez anos de trabalho de campo em penitenciárias femininas eu nunca conversei com nenhuma mulher que me dissesse que colocava miolo de pão na vagina para conter a sua menstruação. Honestamente, elas são muito mais espertas do que isso. Muitas fazem trabalhos de limpeza, manicure, lavagem de roupas e cabelos, por exemplo, umas para as outras e, por meio desses serviços, conseguem cigarros que compram daquelas que têm um pouco mais de dinheiro, ou até da lista de compra da Secretaria de Administração Penitenciária, absorventes. As mulheres maravilhosas com quem passei (e passo) momentos incríveis e com quem tive, certamente, algumas das melhores conversas da minha vida, não são vítimas oprimidas pelo perverso sistema patriarcal. Elas são muito mais do que isso. Elas não são “presos que menstruam”, elas são muito mais do que isso.
A menstruação não é problema central no cotidiano das mulheres presas. Antes o é o tempo que falta para cumprir a pena, as incertezas sobre o filho que está no abrigo, as saudades da companheira que saiu em liberdade antes, a ansiedade em saber se poderá voltar a viver com a mãe ou com os filhos, se esses as aceitarão ao final do cumprimento da pena… Tantas outras coisas produzem o horizonte de preocupações das mulheres presas que a menstruação nunca, em nenhum momento, foi trazida para a pauta das nossas conversas nos pátios das unidades penitenciárias do estado de SP. Aliás, nesses anos todos de trabalho de campo, a única mulher que me falou sobre menstruação foi aquela passou dias presa no “calabouço do aeroporto” de Barcelona e que estava menstruada. Ela passou três dias esperando para ser transferida para a penitenciária sem poder tomar banho e, aí sim, trocar o absorvente. Ela, se tivesse miolo de pão, certamente colocaria no lugar, mas somente ela.
Não sei se você está compreendendo meu argumento querida, é que todo esse afã produzido em cima do enfadonho miolo de pão reitera categorias de gênero que relacionam mulheres, tão somente, à maternidade – à menstruação – e invizibilizam suas complexas camadas. Veja bem, é mais fácil ter mutirões de atendimento ginecológicos e de mamografia do que oftalmológicos em uma prisão feminina. Por diversas vezes vi mulheres sofrendo de problemas de saúde seríssimos que nada tinham a ver com seus aparelhos reprodutivos.
Uma vez vi uma moça com um tumor na cabeça. Deitada, ela não conseguia andar e, tampouco, conseguia que fosse levada a um hospital. Foi a primeira vez que as meninas me levaram aos andares de cima para uma das celas da Penitenciária Feminina da Capital, elas queriam me mostrar a situação daquela moça que tanto sofria e que pedia por atendimentos médicos hospitalares adequados! Claro que fizemos de tudo para que ela conseguisse isso e, logo, ela foi transferida para o hospital (mas essa é outra história…). Vi mulheres cegas tendo de aprender a viver sem a visão dentro da prisão, vi pessoas com diabetes e pressão alta sem poder contar com dieta especial, vi mulheres com a pena vencida dentro das prisões… Mas nunca vi alguma reclamar por falta de absorvente no convívio dos pátios prisionais. E não me diga que eu não perguntei a elas sobre isso. Mas ao perguntar, elas me diziam que isso já havia acontecido, há muitos anos atrás, mas não agora. Além disso tudo, em todas as situações de descaso dos agentes do estado que te contei acima (e que posso seguir a te contar), pude testemunhar uma comoção enorme de todas para ajudar aquelas que estavam cegas, doentes, aflitas… Se alguém não tiver absorventes dentro da penitenciária feminina, pode ter certeza, ela encontrará alguém para emprestar um antes de ter de usar o miolo de pão.
Estou querendo chamar atenção para o fato de nós temos de pensar sinceramente se os acionamentos midiáticos e em debates políticos descontextualizados que trazem a história, tão carregada de dor e sofrimento, da moça que usou o miolo de pão em uma situação de castigo são, de fato, potentes para fazer ver a situação das pessoas em cumprimento de pena nos sistemas prisionais. Para fazer ver as torturas cotidianas perversas a que essas pessoas estão submetidas desde muitas óticas e camadas: desde a abertura de suas cartas e a violação de suas intimidades até a abertura de suas pernas sobre o espelho na fila da visita – situação pela qual passam (ou passavam até muito recentemente) todas as visitas familiares. O que percebo é que acionar de modo tão descontextualizado esse tipo de informação, e jogar na mídia esse tipo de jargão, apenas faz ver de modo banalizado as condições de vida a que mais de 700.000 pessoas estão submetidas no Brasil. Banaliza o sofrimento das mulheres que de fato passaram por esse tipo de situação e banaliza os esforços das muitas que procuram meios de agencia e resistência frente a estas condições de vida. Veja bem, criar uma vítima exemplar a partir de um jargão que descontextualiza uma situação de tortura extrema no qual estão postas as práticas de castigo e uso dos fluídos e excrementos (menstruação, mas também merda e urina) do corpo, também é desumanizador. Pois frente a esta estratégia, o que aparece são pessoas destituídas completamente de suas capacidades de agir. Lançar mão da produção política de uma personagem que é só vítima e não agente de seus esforços em resistir, é destituir as pessoas para as quais estamos lutando de suas capacidades humanas.
Digo tudo isso querida, para evidenciar a minha posição.
Eu sou uma feminista estudiosa de temas que envolvem gênero e sexualidade. Por isso mesmo entendo que a importância em olhar para questões desse tema transbordam problemáticas que relacionem mulheres a situações de opressão e homens a posição de opressores. O “miolo de pão” é amplamente acionado na Assembleia Legislativa de São Paulo por uma vertente das “defensoras dos direitos das mulheres em situação de cárcere” que, a meu ver, estão reproduzindo toda uma profusão discursiva que diz que “questões de gênero” podem ser reduzidas entre “homens precisam de trabalho” e “mulheres precisam de absorventes”. Diante da complexidade das pessoas com as quais eu venho trabalhando há mais de dez anos, dizer que elas menstruam é reduzí-las de modo violento. Mais do que isso, é reduzir de modo perverso os usos táticos que os processos de estado fazem das tecnologias de gênero em suas torturas cotidianas.
Falar sobre maternidade e prisão feminina é muito importante. Tanto quanto falar de paternidade e prisões masculinas, de sexualidade e prisão (feminina e masculina), de processos jurídicos e políticas de encarceramento em massa, de atendimento à saúde nas unidades do sistema penitenciário.
Do mais, sua proposta de recolher absorventes para enviar às presas é uma ótima iniciativa. Independente de qualquer coisa, tenho certeza que elas adorarão receber esse artigo de higiene pessoal! Será um carinho. Para nós, será um pretexto para pensarmos melhor em tantas coisas que envolvem prisão e gênero.
Do mais, se depois de tudo isso você ainda quiser falar comigo, poderemos seguir nossas trocas. Se não, posso te indicar alguém que diga mais sobre pães e menstruação do que eu.
Com muito carinho, atenciosamente, Natália Corazza Padovani.
Natália Corazza Padovani é doutora em Antropologia Social e mestre em Sociologia pela UNICAMP. Desde 2003, tem desenvolvido pesquisas em penitenciárias femininas da cidade de São Paulo analisando oficinas de trabalho, sexualidades e relações de poder, afetos, redes de ajuda e relações amorosas. Em junho deste ano defendeu a tese intitulada “Sobre casos e casamentos: Afetos e “amores” através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona”. Natália integrou a Cooperação Internacional de Pesquisa entre a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e a Universitat Rovira i Virgili da Catalunha o que possibilitou que a investigação nas prisões femininas de São Paulo fosse estendida às penitenciárias catalãs. Até o ano de 2013, Natália integrou o corpo de voluntários da Pastoral Carcerária de São Paulo e de Barcelona. Atualmente, está desenvolvendo projeto de pesquisa sobre a relação entre processos de migração transnacionais que se dão a partir das prisões.