“Uma mulher tem, pelo menos, três vezes mais chances de ser morta pelo companheiro se ele for da segurança pública” aponta Débora Diniz em “A farda e o feminicídio”, a partir de pesquisa sobre violência contra as mulheres realizada no DF. “Se o resultado dessa pesquisa fizer sentido também em outras regiões do país, esse tema é urgente de ser enfrentado”, defende a antropóloga no artigo publicado pelo Correio Braziliense em 11 de junho de 2015.

A farda e o feminicídio

A notícia é escândalo, mas o título é honesto: “PM reformado mata a mulher a socos”. Nova lei dá nome próprio ao crime, feminicídio — quando o homicídio se deu porque a vítima era mulher. O nome dela é Conceição de Maria Lima Martins, a primeira vítima do novo tipo penal na capital do país. Ela foi morta pelo marido, que a espancou e foi dormir. Deu-se conta da morte da esposa somente no dia seguinte. Primeiro negou o feito; em seguida, confessou-se assassino. O caso, poderiam dizer os pessimistas, é só mais um enredo semelhante: as mulheres morrem pelas mãos dos matadores conhecidos, em geral, maridos ou namorados ou ex-maridos ou ex-namorados.

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O enredo semelhante esconde permanências ainda mais comuns, algumas delas silenciadas pelas histórias que se repetem. É verdade que Conceição foi morta pelo marido, o sujeito típico das matanças por ciúme ou amores desfeitos. É também certo que Geovanni Albuquerque Brasil, o matador, estava embriagado. Álcool é chamado fator de risco para a violência contra as mulheres, segundo os especialistas. Havia ainda, contam as notícias, histórias de violências anteriores — falou-se de nove ocorrências, de cárcere privado a lesões corporais. A literatura acadêmica descreve esse conjunto de características como fatores de risco no ciclo de violência. Tudo de acordo com enredo conhecido pela polícia ou pelas academias.

Mas o título da notícia é preciso na ordem gramatical, o sujeito da oração é um policial militar — homem e marido de Conceição, é verdade. “PM reformado mata a mulher” não foi só chamamento de leitura, mas indicador de algo importante para a cena de violência contra as mulheres. Autoridades de segurança pública são personagens de risco às mulheres na casa. Peço perdão pela frase generalizante e, talvez, deselegante para aqueles tantos homens que, apesar da farda, jamais violentariam uma mulher. Não é só a arma que atemoriza as mulheres com a morte, mas também a cultura da farda. Mas com que verdade anuncio tamanha certeza?

Neste ano, foi divulgado estudo que acompanhou a morte de mulheres na capital do país desde a implementação da Lei Maria da Penha. A porta de entrada para conhecer o percurso do feminicídio foi o Instituto Médico Legal — ali, as mulheres chegaram cadáveres. Entre 2006 e 2011, foram 301 mulheres vítimas do que se descreve como morte violenta. Dessas, uma em cada três sofreu feminicídio. A mulher foi morta pelo marido, em casa e sem testemunha. Os homens são também os típicos da casa e dos amores, mas com uma particularidade: 10% (9) dos matadores foram autoridades da segurança pública, entre policiais militares e rodoviários, agentes da Polícia Civil, cabos do Exército e bombeiros. É aqui que PM no título da notícia importa, e muito: uma mulher tem, pelo menos, três vezes mais chances de ser morta pelo companheiro se ele for autoridade da segurança pública.

Conceição atualizou a história de mulheres anônimas que a antecederam no necrotério. Uma em cada 10 das mulheres mortas teve uma autoridade da segurança pública como matador — e não foi policial de rua na guerra às drogas ou em luta contra a violência urbana. O proprietário da arma era o marido, com quem a mulher tinha filhos e dividia a casa. E como exagero em história de horror, em mais da metade dos casos, o matador fardado suicidou-se após o crime: a mesma arma que fez da esposa cadáver, fez também dele corpo morto. O enredo trágico é conhecido da história de violência contra as mulheres no Brasil. No passado, sem o nome de feminicídio, mas de uxoricídio-suicídio, foi também descrito como crime de paixão.

O duplo homicídio-suicídio e a concentração de casos de feminicídio entre autoridades da segurança pública devem nos provocar espanto. Conceição morreu por espancamento, a arma foi desnecessária à matança, mas a brutalidade é indício do que ensaio descrever como a cultura da farda. Há violência contra a mulher na cultura patriarcal brasileira, mas há singularidades nos modos masculinos da farda. Se o resultado dessa pesquisa fizer sentido também em outras partes do país, esse é tema urgente de ser enfrentado porque Conceição poderia estar viva, e os maridos das que a antecederam também poderiam estar vivos. Mas, principalmente, porque nossos equipamentos legais, sociais e políticos confiam à polícia formas de proteção às mulheres.

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