Há pouca informação sobre as vertentes do movimento feminista e sobre seus posicionamentos em relação aos conceitos e direitos em disputa. Essa ausência de informação é agravada por movimentos neofeministas e pós-feministas, que muitas vezes defendem uma limitação de direitos em nome das mulheres
Por Cynthia Semíramis – 8/11/2012
É bastante frequente a divulgação na mídia de novos grupos ativistas que supostamente reinventaram a causa. Normalmente se declaram neo ou pós, acrescido do nome do movimento, ou então são nomeados assim por jornalistas para trazer ares de novidade à matéria.
Diferenciar-se do antigo, reinventar nomes e classificações, é uma estratégia de divulgação que pode ser interessante para o grupo se destacar e receber atenção e novas filiações. Afinal, acreditam, é melhor ser visto como alguém que faz algo inovador do que ser mais um na multidão que segue a linha antiga. Porém, esse tipo de rotulação, na maioria das vezes, esconde questões políticas e ideológicas que podem ser mais conservadoras e arbitrárias do que as do movimento do qual tentam se desvincular.
Especialmente em relação ao feminismo isso ocorre com frequência. É bastante comum que novos grupos feministas sejam divulgados como neofeministas ou pós-feministas, mas essa classificação não sobrevive quando se analisam suas práticas e quais direitos defendem. Pode ocorrer de suas ideias já se encaixarem nas vertentes teóricas feministas existentes, havendo apenas uma mudança no método de atuação. Também é possível que suas ideias sejam na verdade um machismo disfarçado, regulando e limitando a vida das mulheres.
Nem todo movimento de mulheres é feminista
A primeira observação a ser feita quando se fala de feminismo é que nem todo movimento de mulheres é feminista. Elas podem se associar para lutar por uma causa em comum que nada tem a ver com mulheres, ou que não interfira nos direitos das mulheres. Mulheres que lutam contra a carestia/inflação (como as fiscais do Sarney na década de 1980) não estão lutando pelos direitos das mulheres. Poderiam questionar por que a responsabilidade por alimentar a família é somente da mulher, mas não o fizeram: sua luta é por uma mudança que interfere em seu cotidiano, sem questionar seu papel na sociedade.
Há também os movimentos antifeministas, que procuram restringir os direitos das mulheres, como é o caso das militantes contra o aborto ou contra a prostituição. Também é o caso dos grupos que defendem que as mulheres têm o direito de votar, mas que não devem se candidatar porque o seu papel na sociedade é ser mãe e rainha do lar – e qualquer atuação política significaria a negação de sua feminilidade. É bastante comum que esses movimentos, normalmente vinculados a setores de direita, se intitulem feministas (porque falam de direitos das mulheres) ou neofeministas (porque pregam um “feminismo” de retorno aos papéis tradicionais). Mas são movimentos antifeministas porque não respeitam a vontade das mulheres, procurando cercear seus direitos e sua liberdade de escolher o que é melhor para suas vidas.
Para se afirmar que um movimento é feminista, é necessário que ele seja um movimento que procure questionar o papel das mulheres na sociedade e que atue para ampliar os seus direitos. Cabe lembrar que historicamente as mulheres foram consideradas juridicamente incapazes e subordinadas aos homens. O que o movimento feminista faz é lutar para que as mulheres obtenham os mesmos direitos que os homens já têm desde o início do século XIX. Para fazer isso, é necessário que haja uma mudança jurídica que proporcione a igualdade de gênero. Porém, os posicionamentos ideológicos dos grupos feministas variam, produzindo resultados diferentes em relação aos direitos das mulheres.
Os feminismos sob a ótica jurídica
As tendências teóricas jurídicas sobre o feminismo podem ser resumidas em quatro grupos distintos: feminismo liberal, feminismo da diferença, feminismo da dominação e feminismo pós-moderno.
O feminismo liberal considera as pessoas como autônomas e enfatiza valores como igualdade e racionalidade: homens e mulheres são seres humanos e igualmente dotados de razão, por isso devem ter as mesmas oportunidades e direitos iguais. Como historicamente as mulheres tinham menos direitos que os homens, o feminismo liberal procura corrigir isso lutando para que a categoria mulher obtenha os mesmos direitos que a categoria homem (entendida como o modelo jurídico por excelência), obtendo-se a igualdade jurídica.
O feminismo da diferença, ou feminismo cultural, considera que a igualdade na forma da lei não é suficiente, pois há características que tornam homens e mulheres diferentes. Essas características são invisibilizadas pela presunção de neutralidade de gênero das leis que regem a igualdade jurídica. Para que o Direito não prejudique as mulheres, é necessário reconhecer essas diferenças e tratar as pessoas respeitando as diferenças biológicas e culturais entre homens e mulheres.
O feminismo da diferença também recebeu contribuições de outros grupos, especialmente feministas negras e feministas lésbicas, caracterizando o reconhecimento da diversidade. A crítica geral é que o termo “mulher”, aplicado de forma genérica, se refere à mulher branca cisgênera heterossexual de classe média/alta, encobrindo diferentes recortes como orientação sexual, raça/etnia, geração e classe social. Cisgênero, aqui, é o termo que designa a pessoa que se identifica com o sexo ou gênero que lhe foi atribuído no nascimento; transgênero é o termo para quem não se identifica com essa atribuição. Para contemplar as experiências específicas das mulheres que não pertencem ao genérico e limitador “mulher” no singular, passou-se a estudar a diversidade de mulheres e a intersecção entre essas experiências.
Em casos concretos, a abordagem do feminismo liberal e a do feminismo da diferença são bem distintas. Na gravidez, por exemplo, feministas liberais consideram que o tratamento a ser dado é o mesmo de quadros de deficiência física ou mental, mas em caráter temporário. As feministas da diferença consideram que a gravidez é uma situação que diferencia homens e mulheres, visto que ocorre somente em mulheres, e que por isso merece política de proteção específica que realce e valorize essa diferença.
O terceiro grupo é o do feminismo radical, ou teoria da dominação. Ele analisa a situação das mulheres na sociedade com base na concepção de que a discriminação que as mulheres enfrentam é causada pela dominação masculina. A sociedade é patriarcal, sendo mantida por instituições sociais e jurídicas que legitimam uma relação de dominação: os homens são privilegiados e as mulheres são subordinadas a eles. É uma vertente teórica que trouxe muitas inovações, como a percepção do caráter masculino do Direito (ao afirmar que as leis são criadas por homens cisgêneros brancos e ricos para atender a seus interesses), além de mudanças no tratamento da violência contra mulheres cisgêneras, sendo responsável pela criação de legislação sobre o assédio sexual. Sua intersecção com o marxismo fundamenta os movimentos feministas anticapitalistas.
Porém, por mais influente que o movimento do feminismo radical possa ser, ele também recebe críticas por ter um viés muito conservador em relação à sexualidade. Ao entender que as mulheres são sempre vítimas, posicionam-se contra a pornografia e a prostituição, procurando aprovar uma legislação antipornografia e proibir a prostituição (ao invés de legalizá-la para acabar com o estigma da profissão, como querem as prostitutas). Em casos mais recentes, procuram também regular o comportamento masculino ao pretenderem criminalizar o cliente da prostituta.
Essas posturas se aproximam do discurso antifeminista de direita, que julga o comportamento das mulheres em relação à moral e aos bons costumes, dividindo-as entre as não prostitutas, que têm direito a voz e opinião, e as prostitutas, vistas como pobres vítimas que não reconhecem a própria opressão e que, por isso, têm opiniões distorcidas, precisando ser tuteladas. Obviamente, trata-se de um absurdo: regular as escolhas e sexualidade alheia não melhora em nada os direitos e a situação das mulheres. Muito ao contrário, limita sua liberdade, retira a proteção estatal e aumenta os riscos e problemas enfrentados pelas mulheres que trabalham com pornografia e prostituição.
O feminismo pós-moderno questiona e desconstrói os conceitos modernos relacionados a sexo, gênero e sexualidade ao considerar que esses conceitos não são neutros, mas construções sociais usadas para transmitir e manter hierarquias e papéis de gênero. Aqui não se fala somente em mulheres, mas em relações de gênero e construção/desconstrução de identidades. A heteronormatividade e o binarismo homem-mulher também são questionados, abrindo espaço para outras construções sociais que não se limitam aos papéis tradicionalmente atribuídos a homens ou mulheres e definidos de forma estanque, como feminilidade ou masculinidade.
A atuação jurídica dessa vertente subverte completamente conceitos arraigados. Questiona-se a neutralidade do direito pelo fato de a lei incorporar valores religiosos (desrespeitando o Estado laico) para restringir direitos de mulheres, homossexuais e transexuais. Critica-se o casamento como um contrato de união de apenas duas pessoas heterossexuais (por que não mais de duas?), bem como a impossibilidade de casamento e adoção por homossexuais. Ao questionar a definição do conceito mulher (em oposição a homem) e lembrar que se trata de uma construção calcada em um binarismo biológico que não é neutro, discute papéis de gênero e critica fortemente o tratamento jurídico concedido a quem não se enquadra nesse modelo binário e excludente, como é o caso da incorporação de duvidosos conceitos de masculinidade e feminilidade adotados pela medicina para patologizar transexuais e negar-lhes direitos.
Novos métodos para lidar com velhas reivindicações
Nota-se que o feminismo, tal como é genericamente descrito, não dá conta de abarcar todos esses grupos teóricos. Como dentro desses grupos há subgrupos com demandas e críticas específicas, torna-se óbvio que não estamos falando de feminismo, mas de feminismos.
Em todas essas vertentes, está nítido o interesse em manter e ampliar os direitos das mulheres, cisgêneras ou transgêneras, possibilitando a elas uma vida com menos amarras, com menos intervenção estatal para restringir seu cotidiano.
As pautas parecem mudar, mas no fundo estamos falando do mesmo movimento feminista. Ele se adaptou para acompanhar as mudanças advindas dos direitos conquistados. Não se luta mais para obter o direito de voto para mulheres, mas para ampliar a participação das mulheres na política, visto que elas são 52% da população, mas menos de 10% no Congresso Nacional. Não se luta mais para que a mulher tenha o direito de guarda dos filhos (que no século XIX era exclusiva do marido) ou pelo direito ao divórcio (obtido em 1977), mas pela liberdade de romper um relacionamento e pela coparticipação dos responsáveis na criação e guarda dos filhos.
E há pautas que continuam as mesmas, e são mantidas pelo movimento feminista, como as relacionadas à igualdade de salários (a desigualdade já foi de mais de 50%; hoje, mulheres recebem 30% a menos que homens), à violência e à liberdade sexual. Nos anos 1970 e 1980, as feministas afirmavam “quem ama não mata”; hoje a Marcha das Vadias mantém esse slogan e acrescenta “se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias”. Em ambos os exemplos, a discussão é sobre o desrespeito à vontade das mulheres, que ainda são assassinadas porque não quiseram continuar um relacionamento afetivo. O enfoque mudou para reforçar o direito da mulher a escolher seus relacionamentos, mas a luta pela liberdade das mulheres é a mesma.
Os métodos de atuação dos grupos se modificam, mas a preocupação com os direitos das mulheres se mantém. Se antes a luta era por meio de mobilização para mudança legislativa e passeatas, hoje foi ampliada para incluir a intervenção em políticas públicas, diversas formas de comunicação (inclusive via internet) e passeatas caracterizadas pela ironia e irreverência.
Quando se fala de feminismos e de uma nova geração feminista, é necessário atentar para os direitos que estão sendo discutidos. Se é uma restrição, relegando as mulheres ao papel tradicional de símbolo sexual, mãe, esposa e dona de casa, trata-se de um movimento antifeminista, e não há rótulo como neofeminismo ou pós-feminismo capaz de modificar o fato de que estão limitando as possibilidades de vida para as mulheres. Se são usados novos métodos para velhas reivindicações, ampliando e consolidando direitos, estamos falando do movimento feminista. O mesmo que, desde o início do século XX, luta para melhorar a vida das mulheres, ampliando seus direitos e suas possibilidades de escolher o que é melhor para sua vida.
fonte: Revista Fórum