“A Igreja é muito machista”, diz irmã franciscana

Irmã Priscilla espera que o papa Francisco ajude a Igreja a abrir as portas para o sacerdócio feminino

RUTH DE AQUINO E LUIZA TENAN

 “O papa Francisco é muito fofo”, disse uma pequena peregrina no Centro do Rio. Mas, se a menina de cabelos castanhos e ondulados tiver vocação religiosa e quiser ordenar-se sacerdote, será barrada. “Essa porta está fechada”, afirmou Francisco em seu voo de volta do Rio. O papa tachou de “definitiva” a formulação feita por João Paulo II, que veta o sacerdócio feminino. Apesar de enaltecer Nossa Senhora (“Maria foi mais importante do que os apóstolos”) e comparar a Igreja a uma mãe que acalenta, o papa rejeitou a possibilidade de as mulheres assumirem funções mais altas na hierarquia. Não digo nem chegar a bispo ou papa, mas o Vaticano sequer cogita que uma mulher reze missa e consagre a hóstia. Mesmo assim, Francisco pregou um papel feminino mais ativo na Igreja e reconheceu ser necessário construir “uma teologia da mulher”. Como o papa se mostra moderno e tolerante ao dizer que “a Igreja precisa sempre ser reformada” e se adaptar aos tempos, muitas religiosas mantêm a esperança de que, um dia, as mulheres tenham acesso ao exercício da eucaristia – e não apenas à evangelização das comunidades. Entre elas, está Priscilla Dutra Moreira, ou Irmã Priscilla, mineira, formada em Ciências Religiosas na Itália e com trabalho de campo em comunidades carentes na Bolívia. Atualmente diretora pedagógica do Instituto Francisca Paula de Jesus, localizado no Méier, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, ela acha a Igreja “uma das instituições mais machistas dos tempos de hoje”. Ligada à Ordem Franciscana, Irmã Priscilla, aos 50 anos de idade, espera que não sejam precisos mais 50 anos para que a Igreja abra essa porta para as freiras: “Ninguém vai dar isso a nós. Esses avanços não nos serão concedidos pelos homens ou pela Igreja. As mulheres terão que lutar para poder ampliar o seu trabalho religioso”.

– Como a senhora encara o papel das mulheres na Igreja e a proibição de rezar missas?
Irmã Priscilla – É uma lei de uma instituição, como tantas, originada na História. O papel da mulher na Igreja Católica fica meio escondido por ser uma instituição machista. Uma das mais machistas nos tempos de hoje. A questão não é apenas se uma freira pode ou não rezar missa. É mais ampla. Refere-se ao trabalho em si dentro da Igreja. Vários setores são assumidos apenas pelos homens: as tomadas de decisão, os postos dentro do Vaticano, os próprios vicariatos dentro das dioceses. Poder celebrar a missa seria o resultado de uma mudança geral, de fundo.

– Como trabalham as religiosas?
Irmã Priscilla – Nas periferias do mundo vemos muitas religiosas e poucos padres trabalhando. A mulher leva a palavra de Deus às pessoas, às comunidades. Ou seja, como vemos hoje, a prática do Evangelho pode ser feminina, mas a Eucaristia é vetada à mulher. A Igreja proíbe a mulher de consagrar a hóstia porque, para isso, ela dependeria do sacerdócio, um terreno reservado aos homens. A Igreja precisa acordar para mudar. Jesus pregava que a fé se realiza através da convivência, da promoção humana, e as mulheres já fazem isso com extrema dedicação e ternura.

– Religiosas podem celebrar casamentos?
Irmã Priscilla – Onde não há padres, o bispo autoriza a freira a celebrar casamentos e batizados. Porque esse é um serviço religioso que deve ser prestado à sociedade, não pode ser negado às pessoas.

– Por que, na sua opinião, a Eucaristia deveria ser aberta às mulheres?
Irmã Priscilla – A Eucaristia está relacionada com o pão, o alimento, a mesa. E é a mulher que serve a mesa. O papa já reconhece o papel da mulher. Foi Maria quem manteve unida a comunidade dos apóstolos. Os apóstolos se dissolveram, cada um foi para um lado, foi Maria que os juntou de novo.

– E por que as freiras precisam de um  homem, um padre, para consagrar a hóstia
Irmã Priscilla – A Eucaristia é um jantar, a Última Ceia. Ali só havia homens, os 12 apóstolos comandados por Jesus, embora Maria estivesse presente em outros jantares. A partir dessa cena histórica, foram criadas leis barrando as mulheres a uma série de trabalhos dentro da Igreja. Todos perdem com isso. É um processo que ainda vai levar um bom tempo. Mas é inevitável. Naturalmente, a mulher ganhará mais espaço e o direito à consagração. Onde existe uma comunidade em que se divide o pão, celebra-se um jantar, essa é a verdadeira eucaristia no cotidiano da vida e da profissão de fé. Jesus existe na partilha do pão por meio dessa comunidade, e não na pessoa do padre ou da freira. Sem a comunidade é impossível pensar Jesus.

– O que significa “criar uma teologia da mulher”, como sugeriu o papa Francisco ao sair do Rio?
Irmã Priscilla – A Igreja ainda não permitiu essa especificação defendida pelo papa Francisco. Seria uma teologia voltada para o estudo religioso a partir de uma visão feminina de Deus. Todos nós devemos lembrar que a boa notícia da ressurreição de Jesus foi dada por uma mulher. Foi uma mulher a escolhida e não um homem. A igreja reduz a importância desse anúncio.

– A senhora acredita que os bispos e os padres estão dispostos a partilhar o poder com as mulheres na hierarquia católica?
Irmã Priscilla – Não sei se eles estão abertos (risos), mas vai chegar esse momento, e acho que tem que ser uma conquista das mulheres. Nada jamais chegou de graça a nós, em nenhum terreno da vida e da sociedade. A nossa missão precisa se alargar.

– Como a senhora descobriu que tinha uma vocação religiosa?
Irmã Priscilla – Nasci em Mantena, Minas Gerais, divisa com Espírito Santo. Sou filha de político e professora. Uma conjunção maravilhosa. Porque meu pai era um político dedicado à comunidade e minha mãe alfabetizava os adultos. Fui alfabetizada por ela em salas de aula junto com os adultos. De dia ela dava aula para os filhos e à noite para os pais. Minha vocação nasceu com a vontade de servir, igual à prática de meus pais. A vida religiosa me dava a chance de viver para a comunidade.

– E por que se decidiu pela Ordem onde trabalha hoje?
Irmã Priscilla – Como Francisco de Assis, eu queria cultivar minha espiritualidade. O jeito de ele viver era o jeito com que eu gostaria de viver. Foi sua vida que me inspirou. Saí da casa de meus pais com 19 anos, fui para Belo Horizonte, depois morei na Itália para cursar Faculdade de Ciências Religiosas. Vivi em Cochabamba, na Bolívia, onde trabalhei com comunidades carentes. E finalmente passei a trabalhar, no Rio, desde 2006, com casais. Eu acredito que, através da família, conseguimos uma humanização do mundo.

– Existe uma forma feminina de realizar serviços religiosos?
Irmã Priscilla – A nossa forma de nos relacionar com as pessoas é diferente. Os homens são mais racionais e mais durões. E hoje as comunidades estão mais carentes, precisam de carinho, ternura. A mulher gera a vida, traz a alegria. Por isso é tão chocante às vezes quando nos deparamos com uma mulher que rejeita essa ternura e adota uma postura excessivamente masculina ou machista.

– Mas o papa Francisco demonstrou exatamente a ternura de que a senhora fala e, por isso, conquistou brasileiros de todas as crenças e idades.
Irmã Priscilla – A postura de cada papa também depende da história de vida de cada um. Bento XVI nunca viveu na periferia, entre as pessoas comuns, era um papa que vivia no interior da Igreja. Francisco sempre esteve junto aos fiéis, na periferia de Buenos Aires, sempre rejeitou a ostentação e o luxo. Sua sabedoria é baseada em sua experiência de vida, na consciência do verdadeiro papel da Igreja em relação a uma grande massa de carentes. Por isso ele insistiu na tese da proximidade, da mãe que acalenta. Foi muito positiva a vinda do papa ao Brasil. Ele sentiu o povo, e o povo sentiu o papa próximo, não houve aquela distância fria. No meu Colégio, o Instituto Francisca Paula de Jesus, havia, durante a visita, 800 jovens de todas as partes do mundo fazendo catequese. O papa Francisco sorri muito, mas também transmite uma imensa seriedade. Sempre que é preciso, demonstra compenetração e coerência de vida.

– De que maneira a mulher poderia de fato ampliar futuramente seu trabalho e sua influência na Igreja?
Irmã Priscilla – Teríamos que ter um novo João XXIII (1881-1963) para conseguir uma abertura e discutir o tema num Concílio Vaticano III (o último Concílio foi inaugurado em 1962). Mas as mulheres precisariam participar desse concílio, o que nunca aconteceu. Elas não podem ficar à margem de um debate sobre o seu próprio papel. Não considero a atual posição da mulher na Igreja um dogma, mas sim uma norma, uma lei criada pelos homens e pela instituição. Não creio que tenhamos de esperar mais 50 anos para que essa porta se abra. Nós, mulheres religiosas, nos perguntamos: será que através de nós Jesus não chega no coração das pessoas? O primeiro passo seria o direito à consagração, mas nossa missão é muito maior do que isso.

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