Agência Patrícia Galvão
Prazo para sanção ao texto vence dia 1º de agosto. Organizações feministas vêem ataque aos casos de aborto legal já previstos no Código Penal brasileiro na cruzada aberta por entidades religiosas contra a proposta, que não traz nenhuma mudança na legislação em vigor e apenas regulamenta os procedimentos para atendimento hospitalar em nível nacional.
(Luciana Araújo / Agência Patrícia Galvão) A polêmica aberta por grupos religiosos e suas bancadas parlamentares em torno do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 3/2013 ganhará peso nesta semana. O prazo constitucional para que a presidenta da República sancione o texto, aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados e no Senado após quatorze anos de debates, vence no dia 1º de agosto. O projeto, apresentado em 1999 pela então deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), regulamenta nacionalmente os procedimentos autorizados no atendimento multidisciplinar na rede pública de saúde às mulheres vítimas de violência sexual.
Embora não traga nenhuma novidade, apenas padronizando procedimentos que já são realizados em unidades especializadas de saúde da mulher, como o Hospital Municipal paulista Pérola Byington, as bancadas religiosas abriram uma verdadeira cruzada contra o texto. Talvez, na intenção de apresentar a suas bases uma resposta diante do fato de a propositura ter sido aprovada por consenso absoluto nas duas casas legislativas sem o mesmo alvoroço desses parlamentares após acordo nos respectivos Colégios de Líderes. O acordo foi possibilitado pela movimentação parlamentar de construção de uma “agenda positiva” em resposta às manifestações que tomaram as ruas do país.
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Os religiosos – evangélicos e católicos – alardeiam que o texto “legalizaria o aborto” no país e, por isso, não poderia ser sancionado pela presidenta. Mas a profilaxia da gravidez já é norma por meio da administração de contraceptivos de emergência em casos de estupro (a chamada “pílula do dia seguinte”), procedimento que visa apenas impedir que a mulher engravide como decorrência do ataque sofrido.
O texto aprovado no Congresso assegura ainda que as unidades de saúde devam facilitar à mulher o registro da ocorrência e garantir atendimento psicossocial, além da coleta de DNA caso seja possível, visando facilitar a identificação do agressor.
Para a socióloga e coordenadora da ONG Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) Guacira Oliveira, “a sanção presidencial é a decorrência democrática de um processo de discussão que escuta a sociedade e é coerente com a decisão do Congresso”. Guacira considera “inegociável” a promulgação integral do texto
Para enfrentar o lobby religioso, organizações feministas iniciaram uma campanha reivindicando que o projeto de lei seja sancionado na íntegra. Um abaixo-assinado eletrônico reúne assinaturas de entidades e pessoas físicas e já conta com mais de 1.800 adesões.
Garantir aplicabilidade da legislação e direitos da mulher
O Código Penal em vigor no país, de 1940, não pune o aborto nos casos de risco de morte da mulher e gravidez decorrente de estupro. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal reconheceu em julgamento também a legalidade da interrupção de gestação de feto anencéfalo. Desde 1999, uma norma técnica para prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, editada pelo Ministério da Saúde por meio de portaria, prevê também os procedimentos que a rede hospitalar brasileira deve adotar nesses casos. E em março deste ano um decreto editado pela presidenta Dilma Rousseff inseriu no ordenamento jurídico nacional os procedimentos para o atendimento de saúde.
No entanto, pelo fato de não existir até hoje uma lei federal que regulamente este atendimento, muitos profissionais e juristas ainda colocam obstáculos para atender às mulheres, especialmente com relação à distribuição da pílula do dia seguinte e eventual necessidade de intervenção para interromper gestação decorrente de violência sexual.
Médicos e demais agentes de saúde alegam insegurança jurídica ou objeção de consciência, embora caiba ressaltar que não há direito de objeção de consciência em qualquer situação de abortamento juridicamente permitido.
O Conselho Federal de Medicina, apesar de reconhecer na norma técnica do Ministério um avanço, orienta os médicos a exigirem o boletim de ocorrência. O B.O., no entanto, é visto por juristas e entidades defensoras dos direitos das mulheres como uma segunda agressão, já que obriga as vítimas ao constrangimento e ao sofrimento do relato dos abusos às autoridades policiais.
“A existência de uma lei dá essa segurança jurídica e, portanto, uma condição muito mais favorável ao atendimento às vítimas de violência sexual, seguindo os direitos que já estavam previstos”, ressalta Guacira.
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Confira abaixo a entrevista concedida por Guacira Oliveira à Agência Patrícia Galvão.
Que mudanças efetivas o projeto traz em relação à legislação atual?
O projeto não traz nenhuma mudança nas normas que hoje orientam o atendimento às vítimas de violência sexual. A mudança de fato é do ponto de vista do status da norma legal que orienta esse atendimento. Até hoje o que se tem é uma norma técnica editada por meio de portaria e um decreto presidencial. O projeto que está para ser sancionado está integralmente dentro da legislação atual, mas daria às orientações sobre como atender as vítimas de violência sexual uma lei federal para dar suporte à atenção que hoje já é normatizada. Porque uma portaria tem menos força que um decreto, que tem menos força que uma lei ordinária, que tem menos força que um Código, que tem menos força que a Constituição.
E pela falta da lei médicos continuam alegando objeção de consciência ou insegurança jurídica, e alguns juristas argumentam que a norma técnica não tem força de lei para justificar a não interrupção da gravidez nos casos já previstos na legislação.
Exatamente. E a existência de uma lei dá essa segurança jurídica e, portanto, uma condição muito mais favorável ao atendimento às vítimas de violência sexual, seguindo os direitos que já estavam previstos.
Que avaliação vocês fazem da reunião ocorrida na semana passada para discutir esse assunto e das possibilidades de a presidenta sancionar o projeto?
Nós, das diferentes organizações do movimento de mulheres, e as parlamentares presentes à reunião colocamos de maneira clara e incisiva a importância da sanção integral ao projeto de lei para as ministras Gleisi Hoffmann (Casa Civil) e Eleonora Menicucci (Políticas para as Mulheres). E também em relação ao enfrentamento dessas ameaças que esses segmentos religiosos vêm fazendo, de maneira absolutamente antidemocrática porque o projeto de lei foi aprovado por unanimidade na Câmara e no Senado e parte de uma reivindicação de muitos anos do movimento de mulheres. Esse projeto foi apresentado à Câmara dos Deputados em 1999 pela então deputada federal Iara Bernardi e ficou aguardando todos esses anos a conclusão desse debate lento e moroso no ambiente institucional. E só então o projeto entrou na pauta de prioridades das bancadas femininas – o que permitiu agilizar a tramitação na Câmara e no Senado.
E como é de praxe, tendo sido aprovado por unanimidade, a sanção presidencial é a decorrência democrática de um processo de discussão que escuta a sociedade e é coerente com a decisão do Congresso.
De maneira que a nossa expectativa, mais do que isso, nossa reivindicação, é de que não há negociação possível em relação à sanção integral do projeto. Por isso consideramos importante apresentar às ministras a posição do movimento de mulheres e expressar nossa disposição de apoiar integralmente a presidenta na sua decisão de sancionar o projeto de lei complementar.
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O prazo para a sanção presidencial se encerra no dia 1º de agosto. E com toda essa movimentação em torno da vinda do papa, quando as bancadas evangélicas inclusive anunciaram que aproveitariam o momento para intensificar a pressão contra a sanção à proposta, que avaliação vocês têm da possibilidade de o PL ser sancionado?
Acho que é um momento politicamente propício às pressões conservadoras, porque o papa tem uma postura conservadora em relação a essa questão. A Jornada Mundial da Juventude está mobilizada com uma postura conservadora, antidireitos no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos. Ainda que a gente saiba que essa não é a posição dos jovens. A organização Católicas pelo Direito de Decidir divulgou uma pesquisa sobre essa questão, que vocês inclusive vêm difundindo, que é muito clara a esse respeito. Mas a orientação do Vaticano é muito clara no sentido oposto.
Além do mais, os evangélicos resolveram fazer campanha eleitoral com essa visão conservadora, antidireitos e fundamentalista. Esse é o palanque deles, que não perdem nenhuma chance de tripudiar e negar os direitos que as mulheres têm e os direitos sexuais e reprodutivos de uma maneira geral para fazer a sua campanha ultraconservadora.
Foi assim que o deputado federal Eduardo Cunha, líder do PMDB e um dos expoentes ultraconservadores, direitistas e fundamentalistas no Congresso Nacional, apresentou nesta semana um projeto de lei na Câmara criminalizando os médicos, serviços de saúde e servidores públicos que porventura orientem sobre a realização de aborto. Enfim, um projeto de lei anti-PLC 3/2013, que vai exatamente no sentido oposto.
Mas estamos vivendo um momento político que é mais do que isso. Um momento de grande ebulição. A questão da laicidade do Estado esteve presente nas manifestações em todo o país. A derrubada do projeto da “cura gay”, as críticas contundentes em relação ao Estatuto do Nascituro e à bolsa estupro, todas essas questões falaram alto sobre a necessidade de afirmar a laicidade do Estado contra o fundamentalismo religioso.
Penso que o momento político da chegada do papa é um momento singular, mas espero que a presidenta, dentro dos princípios democráticos, seus compromissos e seus discursos em relação à atenção às vítimas de violência sexual e à questão do aborto, que ela já disse que é um problema de saúde pública, seja coerente e que ela sancione.
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O Conselho Federal de Medicina tem um posicionamento antigo favorável à liberação do aborto até a 12ª semana de gestação e, embora se manifeste pela exigência do boletim de ocorrência sob o argumento da segurança jurídica, até agora não se manifestou sobre o PLC 3. Vocês estão em diálogo com eles?
Combinamos dentro da rede de buscar os vários apoios. A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) e a Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global of Choice) se manifestaram a favor, mas com relação ao Conselho Federal de Medicina não sei dizer. Não sei se não se manifestaram por conta da polêmica sobre o Ato Médico.
Já que não há nenhuma mudança no marco legal atual, qual seria, na sua opinião, o verdadeiro alvo dos setores que buscam o veto ao PLC 3? Seriam as hipóteses de abortamento previstas hoje na lei, como o estupro, risco de vida à mulher e gestação de fetos anencéfalos?
Sim, o verdadeiro alvo deles é esse. Eles querem fazer retroceder cada vez mais os direitos das mulheres. Não é mais apenas o debate sobre o momento da vida pós-concepção, eles não querem nem mais permitir às mulheres o impedimento à concepção. Querem o Estatuto do Nascituro, bolsa estupro, alçar o estuprador à condição de “pai”.