Há 25 anos, Paloma Alves era um dos primeiros bebês que nasciam no sistema carcerário brasiliense. Hoje, por ter “decidido pelo errado”, ela está na cadeia pela segunda vez. Trajetória acabou marcada por ausência dos pais, pouca escolaridade, drogas e vida na rua
RENATA MARIZ – Correio Braziliense
Publicação: 03/11/2013 04:00
Iniciada com a Constituição Federal, a vida de Paloma Alves Silva poderia ser um presságio da sociedade igualitária prevista na nova lei. Mas a chegada do bebê de cabelos claros e olhos vívidos, em 19 de outubro de 1988, marcou o princípio de uma outra história, que começa na ala destinada a mulheres presas no Distrito Federal, dentro do Complexo Penitenciário da Papuda, hoje desativada. Ela é uma das primeiras crianças nascidas no sistema carcerário da capital. Agora, 25 anos depois da noite em que veio à luz dentro de um camburão, no trajeto da cadeia para o hospital, Paloma voltou para trás das grades, tornando-se uma das 690 atuais detentas do presídio feminino. Como se determinada pela genealogia, a trajetória da jovem vem marcada por falta de referência familiar, pai desconhecido, interrupção dos estudos, gravidez precoce, prostituição, drogas e vida na rua. “Às vezes penso até que foi por força do destino eu ter nascido aqui e, agora, voltar. Tipo coisa ruim, de geração para geração. Mas a gente colhe aquilo que planta. Eu decidi pelo errado”, diz Paloma, na segunda condenação, por roubo à mão armada. A primeira prisão, de 2007 a 2010, foi por tráfico de drogas. Mesmo crime que levou a mãe, Francisca Alves Silva, à cadeia também por duas vezes. Pouco tempo depois de sair da última passagem pelo cárcere, ela morreu, no fim da década de 1990, de enfisema pulmonar, quando Paloma tinha entre 9 e 10 anos. Para reconstruir a figura materna, a garota soma as poucas lembranças aos relatos de detentas que conviveram com Francisca no presídio. Pelo menos três mulheres, reincidentes no sistema prisional, reconheceram Paloma nos corredores gradeados.
Os detalhes do nascimento da jovem se perdem em informações conflitantes na cadeia. A história que o presídio conta sobre ela remonta a uma situação bem diferente da atual. “Agora tem uma parte especial para as grávidas. Naquela época, pelo que contam, eu virei uma campanha para o governo construir um espaço para os bebês. É o que dizem, não tenho certeza”, relata Paloma. A imprecisão em relação à própria existência que mais incomoda a garota é o anonimato do pai. “Quem sabe ele não poderia ter sido um porto seguro para mim?”, pergunta. Tudo indica que Francisca engravidou de um preso, graças a um furo da segurança, já que as mulheres, naquele período, cumpriam pena dentro da Papuda — um presídio masculino —, em ala separada. No arquivo da detenta, além de muitas faltas disciplinares, há o registro da maternidade no cárcere, mas nada sobre a identidade do pai.
Família
Paloma é a do meio em um grupo de sete irmãs. Só ela nasceu no presídio e foi a única a virar criminosa. Quando saiu da cadeia com a mãe, ainda bebê, passou a ser criada pela avó materna, parentes e conhecidos. “É uma família com que você não pode contar. A gente ficava na casa de um, de outro”, atesta uma das irmãs mais novas, Manoela Alves Silva, 20 anos. Foi no início da adolescência, quando saíram de Ceilândia para Samambaia, sob os cuidados da avó, que Paloma experimentou as primeiras drogas. Uma escalada rápida: maconha, cocaína, merla. Por volta dos 15 anos, passou a fazer programas e morar na rua. Sincera, não atribui apenas ao vício a decisão de se prostituir. “Queria bancar minha droga e poder comprar coisas para mim.” A derrocada veio seis meses antes da última prisão, ao provar o crack.
Pesava 44 quilos quando foi presa, por roubar uma maleta na Asa Sul empunhando um revólver emprestado de um bandido que cobra “porcentagem”. Hoje, diz estar com 58 quilos. Uma tatuagem no braço esquerdo com o nome de uma ex-companheira é a única marca voluntária no corpo de Paloma. Os cabelos, apesar de curtos, escondem um afundamento na testa deixado, segundo ela, por policiais, durante uma sessão de espancamento. A violência das ruas é capítulo constante na vida da jovem. As histórias vêm das pessoas que a acolhiam em estado macabro: suja, roxa, ensanguentada. Além de Manoela, que tentou ajudar a irmã, Maria do Socorro Alves Machado, mãe de uma das melhores amigas de Paloma da época da adolescência, tem recordações devastadoras.
“Ela chegava muito machucada na minha porta. Eu sempre deixei que tomasse banho, vestisse uma roupa limpa, comesse. Passava alguns dias bem, aqui com a gente, mas logo ia embora”, conta Socorro. A casa que recebia a garota esporadicamente virou o lar do filho de Paloma. Grávida com 17 anos e morando na rua, ela deu o menino para Socorro criar quando ele tinha três meses. Na certidão de nascimento, a falta do nome do pai se repete. Mesmo antes de ser presa, as visitas ao garoto eram raras. Hoje com 7 anos, ele sabe que a mãe está na cadeia. “Nós não escondemos nada. Ele foi criado conosco, me chama de mãe e ao meu ex-marido de pai, temos a guarda. Deixei ele ir visitá-la, na primeira prisão dela, mas não permito mais, é muito forte para uma criança”, explica Socorro.
As grades, o barulho de muitas vozes ao mesmo tempo, a revista íntima imposta aos familiares. Paloma concorda com a mãe adotiva do menino, sob o temor de uma terceira geração encarcerada. “Fico pensando que eu passei por isso, quando visitava minha mãe, e estou aqui hoje. Será que, se ele vier, não corre o risco de voltar também? Não quero isso”, diz a presa. A personalidade complexa requer sempre alguns segundos de reflexão das pessoas diante da pergunta sobre os motivos do destino trágico da garota. Não há consenso. Ninguém assinala, entretanto, apenas o vício em drogas, até porque ela passou períodos em boas condições, trabalhando e se sustentando.
“Chego a pensar que é algo espiritual. Não é como um noiado que só pensa na droga. A gente arrumou emprego para ela, fez tudo, mas ela, simplesmente, voltava para a rua”, conta Elane Alves, filha de Socorro e amiga de Paloma. Manoela tem a mesma impressão. Ela refuta a ideia de que a desestrutura familiar, por si só, pesou para o destino da irmã. “É verdade que sempre fomos bem jogadas. A Paloma ainda mais, talvez por ser a filha do meio e a mais revoltada, digamos assim, ninguém queria muito assumir. Mas, se fosse por isso, todas nós seríamos erradas”, diz. “Vejo que a Paloma é igual a minha mãe em um ponto: quer as coisas, mas não quer trabalhar. É uma pena, porque ela é uma pessoa muito cativante.”
Educação
Nas três vezes em que foi confrontada sobre as opções feitas ao longo da vida, Paloma bateu na mesma tecla: “Acho que uma boa educação poderia ter feito diferença na minha história”. Segundo ela, que parou de estudar no ensino médio, a melhor recordação que guarda do mundo de fora da cadeia é o tempo que frequentou a Casa Azul, uma creche em Samambaia que trabalha com meninos em situação de vulnerabilidade encaminhados pela Assistência Social. “Ah, eu me lembro dela, sim”, diz Ilaídes da Glória, uma das mais antigas funcionárias da creche. Os vincos do rosto da senhora de 63 anos se contraem, numa expressão de pesar, ao saber que Paloma está presa. “Quando ela sair, quero muito vê-la.”
Juliana Rodrigues, que frequentou a Casa Azul na época de Paloma, também diz que é impossível esquecê-la. “Ela era agitada, mas não gostava de injustiça. Sempre que um grande batia em um pequeno, ela ia defender”, conta. As anotações no histórico da menina arquivado na instituição ressaltam as “dificuldades financeiras”, “renda familiar de um salário mínimo da aposentadoria da avó”, “moradia alugada” e “morte da mãe quando criança”.
Irani dos Reis, que trabalhava na cozinha da Casa Azul, reencontrou Paloma no presídio, onde presta serviços de manutenção. “Ela era uma graça pequena, se pendurava no balcão para pedir mais um pedaço de bife, uma fruta”, lembra. “Um dia, andando nas alas, ouço um ‘mãe véia’, como ela me chamava lá. Tomei um susto. Com uma família tão complicada, acho que ela poderia ter se tornado mais problemática.”
Na cadeia, o trabalho fazendo laços para cachorros, em parceria com um pet shop, rendeu dias remidos da pena. Prestes a progredir para o semiaberto, “quer continuar sem usar drogas. O resto vem depois”. Após dois dias de entrevista, somando mais de quatro horas em que Paloma vasculhou o próprio passado, despede-se com uma risada. Você é feliz? “Se a gente não rir da vida, que graça tem?”
Na última década, a quantidade de mulheres nas prisões brasileiras aumentou 240%, chegando a 35 mil detentas. Em contrapartida, atendimento específico para presas não acompanhou o crescimento
RENATA MARIZ
Publicação: 03/11/2013 04:00
A menina que nasceu no presídio e, depois de adulta, retorna como detenta significa mais do que a repetição de uma tragédia familiar. Paloma Alves Silva, cuja história o Correio revela na página anterior, não está sozinha. É personagem de um fenômeno demográfico no Brasil: a feminização das cadeias. Na última década, a taxa de crescimento de mulheres encarceradas no país explodiu, chegando a 240%, de 2002 a 2012, o dobro do aumento da presença dos homens no mesmo período, de 124% (veja quadro). Duas em cada cinco presas foram condenadas por tráfico de drogas, repetindo um roteiro traçado por Paloma, que inclui a vivência no mundo paralelo da rua. A maioria tem de 20 a 35 anos, escolaridade precária e média de dois filhos menores de 18 anos.
O salto expressivo da presença delas nas prisões — eram 10 mil mulheres em 2002, hoje são 35 mil — não veio acompanhado de condições dignas para as necessidades específicas da presa. Todo o sistema conta com apenas 15 médicos ginecologistas, o equivalente a um profissional para cada 2.335 mulheres, de acordo com dados apresentados recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça. Ainda segundo o órgão, 30% dos quase 80 estabelecimentos femininos não têm creches ou berçário, ao contrário do que determina a Lei 11.492/2009. Módulos de saúde para gestantes e parturientes são ainda mais raros. Só existem em metade das unidades para mulheres. O último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional, de dezembro passado, registrou 166 crianças vivendo dentro das prisões.
“Se os presídios femininos funcionassem conforme manda a legislação, não seriam violadores de direitos dessas mães, desses filhos, dos profissionais que lá trabalham. Ser filho de um preso, com a ausência de um sistema de garantias, de abrigos adequados, conselhos tutelares e assistência social efetiva, traz uma vulnerabilidade incontestável a esse sujeito”, diz o psicólogo Pedro Paulo Bicalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador nacional de direitos humanos do Conselho Federal de Psicologia. Ao observar o elevado índice de mulheres presas por tráfico (42%, contra 25% entre os homens), o especialista critica a política de entorpecentes do país. “O encarceramento feminino é um dos efeitos da chamada guerra contra as drogas, que foca na repressão e investe pouco na prevenção e no cuidado.”
Resultado ou não da política atual, nunca foi tão elevada a proporção de presos no Brasil, que hoje já se aproxima da terceira colocação no ranking mundial, perdendo para os Estados Unidos, Rússia e China. São 287 encarcerados para cada 100 mil habitantes. No ritmo atual, logo o país tomará o título do Chile de primeiro lugar na América Latina. Além das taxas escandalosas, o carimbo da prisão brasileira atinge a parcela mais vulnerável da população: analfabetos ou semialfabetizados, negros e com baixa qualificação profissional.
“Não é que os menos favorecidos tendem a cometer mais crimes. Mas eles se expõem mais nos crimes que cometem, que é o roubo, o sequestro. Além de não terem defesa adequada, dinheiro, informação”, destaca Sandra Greenhalgh, psiquiatra forense e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria. Bicalho completa o raciocínio com uma comparação. “O tráfico de drogas também é cometido pelos brancos de alta escolaridade, mas dificilmente eles vão para a cadeia, como acontece com os pobres. Sem contar outros crimes envolvendo sobretudo dinheiro público. Não dá para negar que o sistema é seletivo.”
Publicação: 03/11/2013 04:00
Mais recentemente, pesquisas europeias com gêmeos adotados por pais diferentes tentaram estabelecer uma relação entre o envolvimento de pais biológicos com o crime e a trajetória de seus filhos criados por outras famílias. Os estudos, porém, são criticados pela baixa prevalência estatística e demais distorções. Em outras frentes, ganha força a premissa de que o comportamento criminoso é resultado de diversos fatores, internos e externos.
“É claro que o meio exerce influência no indivíduo. Agora, a forma como essa influência se dará, depende de cada um, dos traços de personalidade, da índole. Há uma questão pessoal”, diz a psiquiatra forense Sandra Greenhalgh. Se a escola lombrosiana ficou para trás, como exemplo de retrocesso, outra abordagem polêmica passa a dividir especialistas. Parte da academia tem se debruçado sobre o peso da morfologia cerebral como desencadeador da delinquência. Mas ninguém tem respostas definitivas para a complexidade do fenômeno criminal. (RM)