O feminismo

Lígia Amâncio

DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA

O feminismo nasce com a modernidade e acompanha a sua evolução, desde o século XVIII até à actualidade. Com efeito, apesar da diversidade das questões que foi colocando e das formas de intervenção que assumiu, ao longo destes mais de dois séculos, uma das continuidades que melhor caracteriza o feminismo é a reflexão crítica sobre as contradições da modernidade.

A primeira fase do feminismo, designada de primeira vaga, nasce com a Revolução Francesa e prolonga-se sensivelmente até ao fim da Primeira Guerra Mundial. Dos textos fundadores do movimento destaca-se a Déclaration des Droits de la Femme et de la Citoyenne, de Olímpia de Gouges, publicada em França em 1791, e a obra de Mary Wollstonecraft A Vindication of the Rights of Woman, publicada em Londres em 1792, ambos dedicados à extensão dos direitos políticos às mulheres, através da sua integração na noção, originalmente masculina, de cidadão. A exclusão das mulheres da cidadania assumia, ainda, uma forma particularmente expressiva na legislação sobre o casamento e a família, de que o Código Napoleónico de 1804 foi um exemplo, em França. Submetidas à autoridade dos maridos – e dos pais, enquanto solteiras –, verdadeiros representantes do Estado no seio da família, as mulheres casadas eram remetidas para um estatuto semelhante ao dos escravos, como afirmava John Stuart Mill no texto On the Subjection of Women, publicado em 1869.

O pensamento feminista da primeira vaga questiona, portanto, a contradição, fundadora da modernidade, que se estabeleceu entre o universalismo dos direitos políticos individuais e o universalismo da diferença sexual (Scott, 1998), uma vez que a exclusão das mulheres da cidadania se baseava apenas e só na sua condição de nascimento, assim como a ideologia sobre a diferença entre os sexos que foi necessário produzir para sustentar esta contradição e que recorria à natureza para legitimar a vontade dos homens.

Ao longo do século XIX, a defesa dos direitos das mulheres irá assumir formas de expressão organizada. Em Inglaterra, a proposta (que viria a ser derrotada em Junho de 1867) do então deputado John Stuart Mill, para substituir a palavra ‘homem’ que figurava na lei sobre o direito de voto, pela palavra ‘pessoa’, foi apoiada pela grande petição de 1866, que marcou o início do movimento sufragista. Em França, esta reivindicação é veiculada pelo jornal La Citoyenne, fundado por Hubertine Auclert em 1881, e pela associação que ela dirige, Le Suffrage des Femmes. Nos Estados Unidos o movimento nasce na Convenção que se realizou em Julho de 1848 em Seneca Falls , na sequência do apelo, publicado no Seneca Falls Courier por Lucretia Mott, Martha C. Wright, Elizabeth Cady Stanton e Mary Ann

McClintock, para uma Convenção que discutisse “the social, civil, and religious condition and rights of women”. Nas reivindicações do feminismo deste período, a extensão dos direitos políticos às mulheres, e também aos negros no caso do feminismo americano, dadas as suas fortes ligações ao movimento abolicionista, assim como o acesso à educação pública, são questões centrais. Mas o feminismo francês também é marcado pela emergência de questões sociais, ligadas à família e ao trabalho (Cova, 1997), como a investigação da paternidade e a protecção da maternidade para as mulheres trabalhadoras.

Para além das questões de classe que separavam as socialistas, mais centradas sobre os direitos das mulheres trabalhadoras, das preocupações com os direitos políticos das correntes liberal e conservadora, a fundamentação da reivindicação dos direitos também se dividia entre uma perspectiva igualitarista, baseada no humano universal, e uma perspectiva dualista, baseada na função social da maternidade, enquanto contribuição específica das mulheres. Mas a grande ruptura que marca o fim da primeira vaga do feminismo é a divisão entre pacifistas e apoiantes da I Guerra Mundial, ao mesmo tempo que a crise económica e a extensão do direito de voto às mulheres em vários países (entre os quais não se inclui a França) ao longo das décadas de 20 e 30 do século XX, contribuíram para a desmobilização do movimento.

A segunda vaga do feminismo nas décadas de 60 e 70 resulta, por um lado, do progresso educativo das mulheres ao longo do século XX e, por outro lado, da enorme insatisfação causada pelo recuo da situação das mulheres, na sequência da desmobilização dos homens a seguir à II Guerra Mundial. Estes factores contribuíram para uma tomada de consciência da distância que separava a cidadania, consagrada à face da lei, da autonomia das mulheres, enquanto indivíduos. N’ O Segundo Sexo, publicado em 1949, Simone de Beauvoir analisa o conflito entre a liberdade e a autonomia das mulheres, enquanto sujeitos, e a sua condição de alteridade, enquanto mulheres, salientando os factores sociais, políticos e históricos que contribuem para a construção da feminilidade. Nesta análise, a filosofia e a psicanálise são interpeladas e questionadas pela sua incapacidade em trazer respostas válidas para a questão ou de a enunciar sequer. Nos Estados Unidos, Betty Friedan analisa, n’ A Mística do Feminino, publicada em 1963, o envolvimento das ciências sociais e da psicanálise no enorme esforço argumentativo para ‘empurrar as mulheres para a casa’ que caracterizou os anos 50, enquanto que o papel da ficção literária nesse mesmo esforço, através da ampla difusão de uma imagem particularmente sexuada e degradante da mulher, é analisado por Kate Millet em A Política dos Sexos, publicado em 1970.

O carácter restrito e pulverizado das associações feministas da primeira vaga distingue-se da ampla difusão das ideias feministas que irá caracterizar a segunda vaga, facilitada sobretudo pelo elevado nível de instrução das mulheres naqueles países, mas também pela mediatização das acções colectivas dos grupos e organizações de mulheres que se inscrevem num período de grande contestação social e de tomada da palavra pela sociedade civil. Em 1966 é fundada nos Estados Unidos a National Organisation for Women que será presidida por Betty Friedan até 1970, e o Mouvement de Libération des Femmes nasce, em França, em 1970, por iniciativa de muitas participantes activas nos acontecimentos de Maio de 1968, que se confrontaram com o sexismo do movimento estudantil (Chaperon, 2000).

Mas enquanto nos Estados Unidos o movimento irá sofrer uma clara ruptura entre a corrente liberal, representada pela NOW, cujas reivindicações se centram nas mudanças legislativas, e a corrente radical, que situa a opressão das mulheres na família patriarcal e orienta a sua acção para a politização da esfera privada, já em França as clivagens ocorrem no seio da esquerda, entre as organizações sob influência comunista, mais preocupadas com a situação das mulheres trabalhadoras, mas simultaneamente conservadoras noutros domínios, e os grupos e organizações que, sob a influência de Simone de Beauvoir tinham orientado a sua acção, desde os anos 50, para as questões da sexualidade e da família.

A interrogação sobre o papel da ciência e da cultura dominante, que marcou as obras referenciais do feminismo deste período, irá dar lugar à criação de novas linhas de reflexão e investigação nos meios académicos. Mas se a institucionalização dos women’s studies, que se inicia nas Universidades e Associações científicas americanas logo nos anos 70, estendendo-se posteriormente ao Reino-Unido, foi sobretudo um fenómeno anglo–saxónico, o olhar crítico sobre a ciência e a forma como ela contribuiu para a alteridade das mulheres constituiu, sem dúvida, um importante legado do feminismo dos anos 70.

Um outro, não menos importante, foi o aparecimento das políticas para a igualdade, com a criação de organismos governamentais de defesa dos direitos das mulheres, e
m vários países, enquanto no plano internacional as Nações Unidas promoviam uma série de conferências mundiais sobre os direitos das mulheres e a igualdade para sensibilizar as opiniões públicas e os governos para a questão. Se esta forma de institucionalização foi bem sucedida na relativa desmobilização do movimento, em especial das correntes que mais se tinham centrado nas mudanças legislativas, o fenómeno mais destrutivo do feminismo da segunda vaga foi, no entanto, a reacção que ocorreu nos anos 80, evidenciada na extensa pesquisa jornalística de Susan Faludi (1992), no caso dos Estados Unidos, e por Dominique Frischer (1997), no caso da França.

Este movimento de reacção contra os progressos trazidos pelo feminismo por parte dos meios de comunicação social, do cinema e da literatura de ficção, teve algumas manifestações comuns ao anti – feminismo de outros períodos (Perrot, 1999). A masculinização das mulheres feministas que ressurgiu nesta altura, por exemplo, recorreu exactamente aos mesmos códigos que haviam sido utilizados nos séculos anteriores, acrescentando-lhe apenas o discurso simplista da inutilidade do feminismo face à consagração da igualdade na lei. Tal como acontecera noutros períodos, estes discursos visavam afastar as mulheres do feminismo, minimizando a enorme distância que separa a igualdade de jure da igualdade de facto, partindo, no entanto, de um modelo normativo de mulher que opunham à (não) – mulher / feminista que, só por si, justifica a existência do feminismo.

Mas no anti – feminismo dos anos 80 houve também manifestações particularmente violentas contra as mulheres: no massacre ocorrido na Universidade de Montreal, em 1989, o jovem autor dos disparos que vitimaram várias estudantes justificou-se simplesmente com o seu ódio às feministas. A reacção dos anos 80 contra o feminismo visava repor uma ordem social sentida como ameaçada pelo ganho de poder e autonomia das mulheres e, nessa vertente saudosista de uma mítica ordem natural das coisas, foi igual a outras épocas. Teve, porém, algumas vantagens, como a de dar a perceber a fragilidade institucional das políticas para a igualdade no quadro da governação democrática e facilitar o desenvolvimento das organizações não governamentais, promovido pelas Nações Unidas, que contribuíram para que a questão dos direitos das mulheres se estendesse para além dos limites dos países do centro, onde o feminismo tinha nascido.

O feminismo pós – moderno dos anos 90, marcado pelo desaparecimento do activismo dos anos 60 e 70, constitui, sobretudo, um período de intensa reflexão e de consolidação da teoria feminista. A crítica à ciência estende-se ao contributo do próprio feminismo para os essencialismos e reducionismos dos anos 70 e abre novas perspectivas analíticas ao conceito de género. Inicialmente mobilizado para a compreensão dos limites impostos às mulheres pelas normas de feminilidade e de organização do trabalho e da família, este conceito estende-se, posteriormente, à compreensão dos limites impostos aos homens pelas normas da masculinidade (Connell, 1995). Por outro lado, a contribuição do feminismo para o questionamento do modelo positivista da ciência moderna, através das epistemologias feministas (Harding, 1991) e a procura de um projecto de conhecimento emancipatório, colocaram a teoria feminista no centro do debate pós – modernista.

 

Abolicionismo; Cidadania; Crítica (teoria); Família; Igualdade.

Bibliografia

– Cova, A. (1997), Maternité et Droits des Femmes en France (XIXème – XXème siècles), Anthropos, Paris.

– Chaperon, S. (2000), Les Années Beauvoir 1945-1970, Fayard, Paris. – Connell, R.W. (1995), Masculinities, University of California Press, Berkeley. – Faludi, S. (1991), Backlash. La Guerre Froide Contre les Femmes, Des femmes, Paris (1993). – Frischer, D. (1997), La Revanche des Mysogines. Où en Sont les Femmes Après Trente Ans de

Féminisme?, Albin Michel, Paris. – Harding, S. (1991), Whose Science? Whose Knowledge?, Open University Press, Milton

Keynes. – Perrot, M. (1999), “Préface”, in C. Bard (ed.) Un Siècle d’Antiféminisme, Fayard, Paris. – Scott, J.W. (1996), La Citoyenne Paradoxale. Les Féministes Françaises et les Droits de

l’Homme, Albin Michel, Paris (1998).

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