ROBERT FISK
As dezenas de milhares de jovens egípcios que exigem a saída de Hosni Mubarak do governo tomaram as primeiras medidas políticas para criar uma nova nação que substitua o governo corrupto que governou o Egipto por 30 anos.
Cercados ontem num novo cordão de soldados dos batalhões anti-tumultos com capacetes e viseiras e rolos de arame farpado – a protecção que Washington exigiu ontem que fosse garantida aos manifestantes da Praça Tahrir -, as dezenas de milhares de jovens egípcios que exigem a saída de Hosni Mubarak do governo tomaram as primeiras medidas políticas para criar uma nova nação que substitua o governo corrupto que governou o Egipto por 30 anos.
Sentados nas calçadas imundas, entre o lixo e as pedras e calçamento quebrado por uma semana de combates de rua, traçaram uma lista de 25 nomes de personalidades políticas para negociar uma nova liderança política e uma nova constituição para substituir as ruínas do regime de Mubarak.
Na lista, aparecem os nomes de Amr Moussa, secretário-feral da Liga Árabe – egípcio respeitado; o Prémio Nobel Ahmed Zuwail, egípcio-americano que trabalhou como conselheiro do presidente Barack Obama; Mohamed Selim Al-Awa, professor e autor de estudos islâmicos, próximo da Fraternidade Muçulmana; e o presidente do Partido Wafd, Said al-Badawi.
Outros indicados para a comissão, que deverá encontrar-se com o vice-presidente nomeado Omar Suleiman nas próximas 24 horas, são Nagib Suez, conhecido empresário do Cairo (envolvido no desligamento dos sistemas de telefonia celular ordenado por Mubarak semana passada); Nabil al-Arabi, delegado do Egipto à ONU; e até um cirurgião cardíaco, Magdi Yacoub, que vive agora no Cairo.
Essa selecção – e o Comité dos manifestantes da Praça Tahrir e “eleitores” que votaram pelo Facebook e pelo Twitter – não foi confirmada, mas marca a primeira tentativa séria para converter os massivos movimentos de rua dos últimos sete dias em máquina política capaz de prover um futuro além do derrube do super odiado presidente. As primeiras tarefas dessa comissão serão esboçar uma nova constituição para o Egipto e um sistema eleitoral que impeça que os eleitos se tornem presidentes vitalícios e as eleições sempre fraudulentas que Mubarak criou. Os presidentes poderão exercer no máximo dois mandatos consecutivos, e o mandato presidencial deve ser reduzido de seis para quatro anos.
Mas ninguém dos envolvidos nessa iniciativa tem qualquer dúvida quanto ao futuro sombrio que os aguarda, se falhar essa primeira valente tentativa de interferir directamente na política prática. Houve mais violência na Praça Tahir durante a noite – um engenheiro, um advogado e mais um jovem foram mortos – e identificaram-se vários polícias à paisana na praça. Houve alguns incidentes menores de pedradas durante o dia, apesar da forte presença de soldados, e a maioria dos manifestantes temem que, se os militares deixarem a praça, os manifestantes serão imediatamente presos, e as suas famílias, pelo cruel aparelho de segurança de Mubarak.
Já há relatos tenebrosos de manifestantes que ousaram voltar para casa e desapareceram. O escritor egípcio Mohamed Fadel Fahmy, envolvido nas discussões sobre a comissão, teme pela própria vida. “Só estaremos salvos enquanto tivermos a praça”, disse-me ontem, pedindo que publicasse o seu nome como símbolo da liberdade pela qual luta. “Se perdermos a praça, Mubarak prenderá todos os grupos de oposição – e a violência policial será maior do que nunca. Por isso dizemos que estamos a lutar pela nossa vida.”
O aparelho da polícia política tem agora longas listas de nomes de manifestantes que deram entrevistas a televisões ou cujos nomes foram citados nos jornais e nos posts do Facebook e do twitter.
Os manifestantes identificaram divisões crescentes entre o exército egípcio e os polícias do ministério do Interior, cujos guardas trocaram fogo com soldados há três dias, e continuam a ocupar o prédio em cujos porões as câmaras de tortura permanecem intocadas, ainda não invadidas pelos manifestantes nem alcançadas pelas lutas de rua. São as mesmas salas de horror para às quais os prisioneiros “devolvidos” pelos EUA eram mandados para receber tratamento “especial” pelos mais sádicos torturadores de Mubarak – mais um serviço que os EUA devem a seu aliado “confiável”.
Outro jovem que também está envolvido na definição dos nomes para compor a comissão admitiu que não confia em Omar Suleiman, o ex-espião chefe e negociador nos encontros entre israelitas e palestinianos que Mubarak nomeou essa semana. Suleiman, aliás, foi quem tentou atribuir toda a responsabilidade pela crise à imprensa estrangeira – modo pervertido e desonesto de exercer o poder, no primeiro dia de trabalho. E foi também quem arquitectou a manobra inteligente de cercar os manifestantes da Praça Tahrir, oferecendo aos manifestantes a protecção do exército.
De facto, ontem pela manhã, para susto e choque de todos os que
estávamos na parte oeste da praça, emergiu dos jardins um comboio de grandes camionetes 4×4 com vidros negros, saído do sector próximo ao Museu Egípcio, parou praticamente à nossa frente e foi imediatamente cercado por uma guarda pretoriana de soldados com boinas vermelhas e uma guarda – gigantesca – de soldados da segurança com escudos e espingardas com mira telescópica. Então, do veículo do meio do comboio, saltou a figura diminuta, de óculos, do marechal de campo Mohamed Hussein Tantawi, chefe do estado-maior do exército egípcio e amigo de infância de Mubarak, usando uma boina verde-caqui do uniforme militar e, nos ombros, as insígnias cruzadas de general.
Foi visita para chamar a atenção. O marechal acenou para os manifestantes que se aglomeravam junto ao cordão militar para testemunhar aquela cena extraordinária. A multidão foi ao delírio. “O Exército do Egipto é o nosso exército”, gritavam em uníssono. “Mas Mubarak é contra nós”. Eis a mensagem que Tantawi teve de levar para o seu amigo Mubarak, mas a visita, em si, foi poderoso gesto político. Diga Mubarak o que disser sobre “mãos estrangeiras” a manipular os que pedem o fim de seu governo, e por mais mentiras que Suleiman invente sobre jornalistas estrangeiros, Tantawi foi à praça para mostrar que o exército levará a sério a missão de proteger os manifestantes. A recente declaração dos militares, de que não atirariam contra egípcios que queiram derrubar Mubarak, porque as suas exigências seriam “legítimas”, está agora autorizada também por Tantawi. Daí a crença dos manifestantes – embora ingénua e temerária -, na integridade dos militares.
Crucialmente ausentes da lista de figuras propostas pela comissão estão Mohamed ElBaradei, ex-inspector de armas da ONU e laureado com o Prémio Nobel, e membros da Fraternidade Muçulmana, o espectro ‘islâmico’ que Mubarak e os israelitas sempre trazem à tona para assustar os EUA e persuadi-los a manter no poder o velho Mubarak. A insistência da Fraternidade em não participar de quaisquer articulações antes da partida definitiva de Mubarak – e o apoio que ofereceram a ElBaradei, cujas já fanadas ambições presidenciais (ainda que só “transicionais”) o tornaram pouco confiável para os manifestantes da Praça – acabaram por, de facto, excluir os “irmãos”. Astutamente, Suleiman convidou a Fraternidade para reunião de negociação, sabendo de antemão que não aceitariam qualquer contacto enquanto Mubarak continuar na presidência.
Mas a indicação de al-Awa para compor a comissão – e a do intelectual islâmico Ahmed Kamel Abu Magd – garantirão que as ideias da Fraternidade estejam representadas e sejam apresentadas em qualquer eventual discussão com Suleiman. Nessas reuniões serão tratadas questões de direitos civis e constitucionais e uma cláusula especial a ser aprovada com carácter extraordinário para permitir que Suleiman governe temporariamente em circunstâncias em que “o presidente está incapacitado para cumprir seus deveres”.
Mubarak será autorizado a continuar a viver no Egipto, como cidadão comum, sem qualquer participação – pública ou privada – na vida política do país. Mubarak ainda é visto como oponente feroz, que não hesitará em decapitar a oposição, se conseguir manter-se no poder.
“Mubarak é da velha escola, como Saddam e Arafat, e nos últimos dois dias mostrou a sua verdadeira cara”, disse-me ontem outro dos manifestantes que apoia a ideia de constituir-se aquela comissão. “É Mubarak quem está por trás dos ataques contra nós e dos tiros e mortos”. Mohamed Fahmy sabe do que está falando. O seu pai viveu sete anos exilado – depois de ter proposto que se fizessem manifestações de rua como as que estamos a ver, já na luta para livrar o país das garras de Mubarak.
O dia no Egipto, em resumo
O recolher obrigatório foi encurtado
O recolher obrigatório no Cairo foi encurtado. É proibido permanecer nas ruas entre 19h e 6h, em vez das 17h e 7h.
Escritórios da Al Jazeera foram incendiados
Os escritórios da Al Jazeera no Cairo foram depredados e incendiados. A rede acusou os homens de Mubarak de tentarem impedir a cobertura, e informaram que a página da rede internacional fora invadida. Semana passada, as autoridades fecharam os escritórios e cancelaram as credenciais dos repórteres.
A economia em colapso
A economia do Egipto perdeu cerca de 3,1 mil milhões, pelo menos, por causa da crise, informou ontem o banco de investimentos Crédit Agricole. A agitação na cidade levou ao fecho de lojas e bancos, e milhares de turistas deixaram o país. O banco calcula que a crise esteja a custar pelo menos 310 milhões de dólares de prejuízos ao país ao dia. Disse também que a libra egípcia poderá perder até 20% do valor em relação ao dólar.
Obama critica serviços de informações
O presidente Obama criticou o fracasso dos serviços de informação dos EUA, que não anteciparam as crises da Tunísia e do Egipto – como informa a Associated Press.
E agora, o que acontecerá?
Mubarak parte
Se entender que as vozes que clamam pela sua prisão, julgamento e eventual enforcamento começam a ganhar impulso nos níveis superiores do governo e do exército, pode aproveitar algumas das propaladas ofertas de asilo que teria recebido, e sumir. Essa possibilidade é mínima. Se estivesse preparado para partir, já teria partido, logo que se viu claramente a extensão dos protestos e a repercussão no mundo árabe. O discurso de ontem mostrou que está decidido a seguir os seus próprios planos.
Uma partida negociada
As potências ocidentais, em particular os EUA, preferem essa solução, que já levou aos discursos de “a transição ordeira deve começar agora”. Para que Mubarak aceite, será preciso convencê-lo de que haverá uma saída “honrosa” para ele. Caberia aos altos escalões do exército providenciar alguma saída desse tipo, sobretudo agora, depois de Mubarak já ter apresentado os EUA também como seu inimigo. Se tiver de sair, o seu vice-presidente Omar Suleiman encarregar-se-á do governo de transição, que incluirá elementos da oposição e terá de preparar novas eleições.
Os protestos esvaziam-se
Alguns apoiantes de Mubarak ganham novo fôlego, se, apesar de todo o som e fúria das ruas, o movimento não conseguir derrubar o governo. Quanto mais os protestos se prolongarem, menos provável que Mubarak parta repentinamente. Até alguns dos principais inimigos de Mubarak já consideram a possibilidade de ele permanecer no poder até Setembro. Os que querem que saia já argumentam que muita coisa pode mudar antes da partida definitiva de Mubarak e temem actos de violência extrema se os manifestantes perderem a protecção do Exército. Esse cenário só se materializará se o Exército egípcio e os EUA concluírem que essa seja a melhor solução.
Confronto e banho de sangue
Os confrontos na Praça Tahrir no centro do Cairo na 5ª-feira mostraram a extensão do banho de sangue que pode acontecer se o governo concluir que ainda tem força para manter-se no poder, se esmagar a oposição. Mas essa possibilidade diminuiu quando os protestos se ampliaram. Qualquer ataque patrocinado pelo Estado, contra os cidadãos, será recebido com escândalo e ultraje no ocidente, e pode levar ao fim da ajuda que os EUA garantem ao Egipto e da qual o governo de Mubarak depende.
Publicado a 5/2/2011, no jornal britânico The Independent.
Traduzido pela equipa de tradutores da Vila Vudu