Ullisses Campbell – Correio Braziliense
São Paulo — Todos os dias, quando acorda, o servidor público Andréas Maurice, 40 anos, veste uma calça jeans e uma camisa social para dar expediente na Secretaria do Trabalho de São Paulo. Não foi sempre assim. Há dois anos ele era obrigado a usar sutiã e, em determinadas situações, até saia. Andréas nasceu Ana Cláudia, foi criado como uma pessoa do sexo feminino, mas se sente homem.
Há um ano ganhou um laudo de um psicólogo atestando que é transexual e conseguiu fazer uma cirurgia para retirada dos seios (mastectomia). Agora, está na fila de espera do Serviço Único de Saúde (SUS), em São Paulo, para retirar todo o sistema reprodutor. O próximo passo para virar um homem definitivo é enfrentar a neofaloplastia , cirurgia que constrói o pênis. São Paulo foi o primeiro estado a ter um centro de referência e treinamento em DST/Aids e um ambulatório de saúde integral para transexuais e travestis.
É esse órgão que as mulheres que desejam virar homem e vice-versa procuram para ter atendimento psicológico e ser encaminhados para a mesa de operação. Mas, para entrar no bisturi, é preciso provar com laudos o transtorno de identidade de gênero. “O paciente tem que ter o desejo de viver e ser aceito como um membro do gênero oposto”, ressalta o psicólogo Luís Carlos Fernandes, especializado em atendimento a transexuais.
“Na infância, todos riam de mim. Tive muita força de vontade para estudar e ter um curso superior”, conta Andréas. Na adolescência, sentia-se homem e apaixonava-se por mulheres. Mas foi com um homem que se casou e teve uma filha, hoje com 10 anos. “Demorei para entender que eu gostava do meu namorado, no fundo, porque eu queria ser como ele”, conta. Hoje, sua filha o chama de pai, apesar de saber que se trata de uma mulher. “Converso muito com ela. Aos poucos, vou contando toda a verdade”, diz. A maioria das pessoas confunde Andréas com uma lésbica, já que tem aparência masculina, voz grossa e cabelo curto, partido ao lado. “Mesmo a lésbica que tem aparência feminina, sente-se uma mulher. Ela está satisfeita com o sexo que tem. Já a mulher transexual não está satisfeita com os seios e o órgão sexual. A semelhança entre as duas, na maioria dos casos, está só na aparência”, explica o psicólogo Ricardo Barbosa Martins, da Secretaria de Saúde de São Paulo.
Na certidão de nascimento do transexual Alexandre Santos, 38, está escrito Alexandra. Só 8 anos atrás, graças a muita terapia, ele entendeu que é um homem preso num corpo de mulher. No entanto, ele tem seios e menstrua todos os meses. “Sinto-me constrangido, envergonhado e humilhado.”
Psicólogos
Alexandre é o primeiro paciente da fila do SUS a ser submetido à cirurgia que vai arrancar seus seios, trompas, útero e ovário em São Paulo. Para enfrentar a operação, todos os pacientes foram submetidos a uma bateria de questionamentos com psicólogos. “Trata-se de uma cirurgia irreversível. Por isso, temos que estar amparados com laudos para saber se é isso mesmo que ele ou ela quer”, explica o médico Paulo Peixoto, do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Paulo Peixoto já fez 12 cirurgia de troca de sexo. Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil, a cirurgia de troca de sexo é feita pelo SUS desde 2008. De lá para cá, já foram realizados por conta do governo 60 procedimentos, a maioria em homens que nasceram com corpo de mulher e tiveram que extrair o pênis e todo o conjunto reprodutor. Atualmente, esse tipo de cirurgia é feita apenas em hospitais universitários de São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Porto Alegre, onde já foram realizadas, recorde nacional.
O custo médio de cada uma dessas cirurgias é de R$ 1,3 mil. Na rede particular, chega a R$ 30 mil. Peixoto explica que, com a retirada do útero, os transexuais masculinos deixam de menstruar, além de prevenir doenças, como o câncer, que é propício por causa da utilização excessiva de hormônios masculinos que modificam as características sexuais, como o tom de voz e os pelos. Já com a retirada da mama, eles deixam de esconder os seios. “O maior problema, no meu caso, são os seios. Eles são o maior símbolo da mulher. Quando me livrei dos meus, malhei feito louco para ganhar peitoral masculino. Hoje, não fico um domingo sem correr no parque sem camisa para mostrar que sou homem”, diz o contador Sérgio Maragolli, 34 anos, Renata na certidão de nascimento.
Sem nome nos documentos
São Paulo — Depois da cirurgia de troca de sexo, os transexuais enfrentam uma nova batalha: a mudança definitiva do nome nos documentos. Para quem nasceu com um sexo e passou a ter outro, ter um nome de outro gênero acaba sendo um tormento. “Sou homem, em todos os sentidos. Moro com uma mulher e adotamos uma filha. Mas todas as vezes que alguém me pede a identidade ou tenho de pagar uma conta com cartão de débito ou de crédito, passo por constrangimentos”, diz Patrick Lima, 29, Sílvia na certidão de nascimento e em todos os demais documentos. Nada em Patrick lembra uma mulher. Ele fez a cirurgia no Canadá há 5 anos. Hoje, tem porte masculino, fala grosso e gesticula feito homem. Conta que outro dia parou o carro em cima da faixa de pedestres e o guarda de trânsito pediu os documentos. Quando viu que tinha nome de mulher na habilitação, o guarda se afastou do carro e, pelo rádio, chamou reforço policial. “Por pouco, não fui preso em flagrante por falsidade ideológica. Tentei explicar que era transexual e o guarda deu um sorriso de canto de boca”, relata Patrick.
Transtornos
Para essas emergências, ele aciona um advogado que cuida da troca de nomes na Justiça. Andréas Maurice ainda tem que dar explicações em aeroporto e no caixa de supermercados, mas conseguiu se livrar do transtorno no local de trabalho. Graças a uma portaria do Governo de São Paulo ele passou a ter recentemente escrito em seu crachá, no contracheque e até no e-mail funcional o nome de homem, apesar de ter na carteira de identidade o nome de mulher.
Por via das dúvidas, para evitar aborrecimentos, ele anda com o laudo no bolso que atesta que é transexual. “Agora, meu corpo está conforme à minha identidade sexual”, define.
Carla Suely, 41, nasceu homem e hoje é uma mulher. Apesar de já ser operada há 15 anos, ainda não conseguiu mudar os documentos. “Quando fui matricular a minha filha em um colégio particular, passei vergonha por ter documento com nome de homem. Por mais que apresente laudos provando que sou transexual, eles sempre perguntam se sou o pai ou a mãe. Às vezes, acho que fazem de propósito”, relata. Como não há legislação específica para a troca de nomes, a decisão fica a critério do juiz. (UC)