Ana Claudia Jaquetto Pereira*
No fim de 2010, a Lei Maria da Penha voltou a figurar nos noticiários e rodas de conversa com a aprovação de projetos de lei que modificam seu texto em duas comissões da Câmara dos Deputados. Um dos projetos afirma que a Lei se aplica para namorados. O outro estabelece que não é necessário o pronunciamento da vítima para que os agressor seja processado por crimes de lesão corporal leve.
Ambos tentam sanar falhas que não estão no texto da Lei, e sim na forma como ela vem sendo aplicada pel@s operadoras/es de direito.
No âmbito do Poder Judiciário, observamos comportamentos díspares: alguns juízas/es são grandes aliados das mulheres, enquanto outr@s se recusam a aplicar a Lei e continuam a classificar a violência doméstica como “crime de menor potencial ofensivo”. Esta negligência coloca a vida das mulheres em risco e desrespeita direitos assegurados.
A atuação do Superior Tribunal de Justiça tem oscilado entre decisões que reafirmam o conteúdo da Lei e pronunciamentos que a deturpam. O último posicionamento da corte determinou que processos de indiciados pela Lei Maria da Penha podem ser suspensos por um período de dois a quatro anos e a punibilidade pode ser extinta após esse período. Desferindo talvez o pior golpe até o momento, a decisão coloca a vida de milhares de brasileiras em risco e contribuiu para a banalização da violência.
Ainda no que se refere ao Poder Judiciário, o Ministério Público Federal impetrou uma ação com o objetivo de determinar que o crime de lesão corporal contra mulheres não exija pronunciamento da vítima para prosseguimento da ação penal, a ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Outras duas matérias aguardam julgamento do STF: a primeira reafirma que os processos não dependem do pronunciamento da vítima, e a segunda declara a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Decisões favoráveis às mulheres nestas três ações podem pôr fim às controvérsias jurídicas e interpretações machistas, mas dependerão do entendimento d@s ministros.
A resistência que a Lei Maria da Penha enfrenta em alguns tribunais tem motivado a apresentação de um sem-número de projetos de lei. Atualmente, o CFEMEA acompanha 23 projetos com este teor que tramitam no Congresso Nacional. Produzidos às pressas, após casos de grande repercussão ganharem a mídia, a maioria deles é redundante e não alteraria em nada o funcionamento da Lei. Alguns propõem retrocessos e um deles criminaliza a violência doméstica contra os homens, que não é fenômeno documentado em nossa sociedade e que já dispõe de mecanismos legais para tratar dos casos existentes.
Ao analisarmos a Lei, entretanto, notamos que seu texto é bastante completo. Por exemplo: o artigo 5º, que define violência doméstica e familiar, considera crimes cometidos: “III) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. O inciso III foi inserido exatamente para que fosse possível enquadrar casos de agressão de namorados, ficantes, amantes e qualquer outra forma de relacionamento que venha a ser popularizada e na qual a violência ocorra.
Por outro lado, é notável a carência de debates e dados empíricos que orientem a produção dos projetos de lei. O texto da Lei não deixa margem para dúvidas e a resistência em aplicá-la decorre do machismo entranhado nas instituições públicas no país. Sem sua superação, a aprovação de cerca de 20 projetos inócuos certamente dará projeção midiática para algumas/alguns parlamentares, mas pode vir a minar a consolidação da Lei junto a tribunais e à opinião pública. Os novos textos voltarão a ser contestados e usados contra as mulheres.
Mais de 40% das brasileiras já sofreram violência de gênero em ambiente doméstico e familiar. A cada 15 segundos uma mulher é espancada no país. A sociedade está disposta a enfrentar o problema: segundo o IPEA, 91% da população quer que este tipo de crime seja investigado, mesmo sem a representação (queixa) da vítima; 80% afirma que a Lei Maria da Penha pode evitar ou diminuir a violência contra as mulheres.
Milhares de pessoas já se beneficiaram dos avanços proporcionados pela Lei, mas é necessário expandir e aprimorar as políticas públicas de apoio: faltam recursos orçamentários para delegacias especializadas, casas abrigo, atendimento psicológico e jurídico, pessoal para assegurar o cumprimento das medidas protetivas etc.
A reversão deste quadro passa pela erradicação do machismo vigente na sociedade e requer o compromisso de parlamentares, do Poder Executivo e de operadores de direito. Precisamos de recursos, não de mudanças. Neste sentido, o Parlamento pode desempenhar um papel importante no aporte de recursos orçamentários para a implementação da Lei no PLOA 2011 e no PPA 2012-2016 e no cumprimento de sua função constitucional de fiscalização do uso destes recursos.
A implementação da Lei Maria da Penha é mais urgente, e será atingida com vontade política, aumento de dotações orçamentárias e expansão de políticas públicas. Quaisquer alterações devem ser objeto de debates aprofundados, a exemplo do processo que deu origem à Lei, que contou com a participação de acadêmic@s, juristas, advogad@s, parlamentares e militantes feministas.
Consultora do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) para Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
atualizado em 26/1/2011 – 20h23
Lei Maria da Penha precisa ser apoiada e não desfigurada from Universidade Livre Feminista on Vimeo.
BRASIL – Ana Claudia Jaquetto Pereira, consultora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria-CFEMEA, fala um pouco sobre a Lei Maria da Penha, que tem por objetivo proteger a mulher vítima de agressão e violência.
Ela nos conta que a Lei Maria da Penha tem o apoio de ampla maioria da população brasileira. Contudo, ainda precisa ter seus instrumentos priorizados pelas autoridades públicas. Para que a Lei funcione bem é necessário que o orçamento, da União, dos Estados e dos Municípios, contemple recursos para políticas públicas relacionadas à proteção das mulheres, formação dos agentes públicos, inclusive do Judiciário, construção de casas-abrigo, de creches, para políticas de geração de emprego e renda, para apoio à organização autônoma das mulheres etc. Para que os poderes Executivo e Legislativo priorizem no orçamento as políticas públicas voltadas as mulheres é importante que movimento sociais se organizem para pressionar.
No Legislativo, ela nos informa, há uma série de propostas de
mudança da Lei, mas elas não melhoram em nada o que já está estabelecido, há algumas que podem prejudicar a lei. Por isso sugere que as alterações que sejam propostas à Lei sejam debatidas amplamente com os movimentos feministas e todas as pessoas que atuam na proteção das mulheres.
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