Os humanos direitos em alta

 

VALOR ECONÔMICO -SP

O primeiro efeito simbólico da “era Dilma” que começa talvez seja um olhar renovado, no governo e na sociedade, sobre o tema dos direitos humanos. Em sua primeira entrevista coletiva como presidente, Dilma Rousseff anunciou sua “posição intransigente sobre direitos humanos”, citando o massacre de Eldorado dos Carajás (PA) em 1996, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e a condenação à morte por apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani, ponto polêmico da política externa na era Lula. Além disso, o objetivo anunciado como principal para seu governo é a erradicação até 2014 da miséria no país, primeira das oito metas universais da ONU para 2015.

Dilma mencionou também, no discurso de posse, a luta de sua geração contra a ditadura. A própria presidente, quando jovem, ficou presa de 1970 a 1972 e sofreu uma das mais graves violações ao direito da humanidade: a tortura. A ex-militante, ao assumir a Presidência, pode carregar consigo uma imagem impregnada de direitos humanos. “A presidente Dilma é tão simbólica quanto um presidente sociólogo e um presidente operário. Por um lado, por ser mulher, por outro, por ter militado contra a ditadura militar, presa política, um exemplo vivo do que foi a luta democrática nos “anos de chumbo”. O “valor simbólico” representa uma esperança para que a agenda dos direitos humanos avance neste governo”, afirma João Ricardo Dornelles, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-RJ.

De todo o universo envolvido pela noção de direitos humanos, o primeiro aspecto a atrair os holofotes foi o direito à memória, notadamente em relação ao período da ditadura militar. A experiência da presidente no passado reacende as esperanças de ativistas pela abertura dos arquivos da época – exigida por julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em novembro – e a punição aos abusos do período. “Mais do que no governo Lula, há vontade política nesse sentido. Mas as injunções da luta política, as políticas de aliança, os impasses para a governabilidade podem estabelecer os limites para que ela seja plenamente implementada”, diz Dornelles.

Uma das primeiras manifestações públicas dessa simbologia de Dilma aconteceu em 2008, quando ela ainda era ministra da Casa Civil. Em resposta ao senador José Agripino Maia (DEM-RN), que durante uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) fez alusão a uma entrevista em que Dilma confessava ter mentido nos interrogatórios da ditadura, a então ministra ofereceu uma explicação elaborada e extensa dos horrores da tortura. Dilma rejeitou a comparação entre o regime autoritário de 1964-1984, argumentando que a diferença entre a ditadura e a democracia é que “na ditadura não há espaço para a verdade, por que não há espaço para a vida”. Já presidente, Dilma sinalizou sua postura quanto à memória do período de exceção ao repreender o general José Elito, chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), que havia declarado não ser motivo de vergonha, mas mero “fato histórico”, a existência de desaparecidos políticos no Brasil.

Apesar da condenação pela CIDH, a iniciativa não será fácil. Um ícone da disputa, na esfera federal, em torno dos direitos humanos é a Comissão Nacional da Verdade, contida no terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), com a atribuição de investigar “a responsabilidade do Estado pelas graves violações de direitos humanos” ocorridas durante a ditadura militar. Em seu discurso de posse, no dia 3, a secretária de Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, reiterou a intenção do governo de instalar a comissão. Embora Nelson Jobim, ministro da Defesa, tenha manifestado apoio à iniciativa, o tema é delicado em meios militares. No fim de 2009, o então presidente Lula assinou o decreto do PNDH-3, incluindo a possível revisão da lei de anistia e a instauração da Comissão da Verdade, seguindo o exemplo de países vizinhos, como a Argentina, que processou e acabou condenando, em novembro de 2010, um de seus ex-ditadores, Jorge Rafael Videla, por crime de lesa-humanidade. Em reação ao decreto de Lula, os presidentes do Clube Militar, do Clube Naval e do Clube da Aeronáutica divulgaram uma nota intitulada “Um País de Todos”, repudiando a investigação e falando em revanchismo no Brasil.

No entanto, a investigação de violações dos direitos humanos durante regimes de exceção repercute além da punição aos responsáveis. “As pesquisas mostram que países que tiveram “comissões da verdade” reduziram os índices não só de tortura, mas também de execuções e sequestros praticados por policiais e militares. Há uma contradição evidente: se os torturadores da ditadura tiveram promoções e recebem pensão, que incentivo tem o policial para agir corretamente?”, argumenta o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Se as forças policiais brasileiras estão entre as mais mortíferas do mundo e são célebres nas favelas cariocas por “subir o morro batendo”, esses traços não nascem por acaso. Desde os tempos do Estado Novo a polícia, sob Filinto Müller, era conhecida pela truculência e a crueldade.

As deficiências no campo dos direitos humanos ainda são profundas e atravessam diversas áreas. Coeficiente mais usado para medir a dispersão estatística, o índice Gini brasileiro insistentemente acima de 0,5 expõe a desigualdade do país. A proporção de apenas 1,9 defensor público para cada 100 mil habitantes demonstra que a maior parte da população não consegue recorrer às leis. A renda média das mulheres segue 40,2% menor do que a dos homens e a proporção de analfabetos na população negra e parda é 131,1% maior do que na população branca. Estudos de entidades que militam pelos direitos humanos revelam a dimensão hercúlea do desafio a que se propôs Maria do Rosário quando, em seu discurso de posse, manifestou o desejo de desenvolver a “cultura de direitos humanos” no Brasil. Em que pesem os esforços do governo e da sociedade desde a redemocratização, bem como avanços no combate à desigualdade, à pobreza e a diversas formas de discriminação, os dados apontam para um país onde as violações de diretos humanos são sistemáticas e estão inscritas no âmago da vida social.

Em dezembro, o NEV-USP divulgou seu 4º Relatório Nacional Sobre os Direitos Humanos no Brasil. Nele, transparecem as desigualdades regionais e sociais do país, a lentidão com que avançam os indicadores, como acesso à Justiça, número de leitos hospitalares e saneamento básico, e o longo caminho a percorrer. Por outro lado, veem-se “ganhos substantivos em termos de adoção de legislação” e os primeiros resultados de um esforço de longo prazo para disseminar os direitos humanos no país. Para Paulo Sérgio Pinheiro, um dos coordenadores do relatório e autor do prefácio, os resultados evidenciam “a contraditória situação dos direitos humanos no país”.

Segundo Pinheiro, que foi secretário dos Direitos Humanos no governo de Fernando Henrique Cardoso, “a vantagem do Brasil é que temos pelo menos 16 anos de continuidade em políticas de direitos humanos. Tanto o governo de Fernando Henrique quanto o de Lula mantiveram uma política de Estado de direitos humanos. Mesmo antes, [José] Sarney ratificou o tratado contra a tortura, [Fernando] Collor foi o primeiro a obrigar os postos diplomáticos a conversar com ONGs internacionais e Itamar [Franco] levou o Brasil a uma boa participação na II Conferência de Direitos Humanos [Viena, 1993]”. Porém, diversos aspectos ainda atrasam a evolução brasileira no campo dos direitos humanos. “Nosso calcanhar de Aquiles é o Estado de direito e o funcionamento de suas instituições. O acesso à defesa legal é ridículo para uma democracia do tamanho do Brasil e as classes baixas são esbulhadas pela Justiça. O tratamento preferencial às elites é delirante.”< /p>

O quadro desenhado por esse relatório e outros documentos revela um país onde, como a concentração de renda insiste em não infletir, uma grande proporção da população não tem acesso ao princípio mais básico dos direitos humanos: a representação política. Daí a repetição de casos de escravidão em fazendas, torturas em delegacias e agressões domésticas. Mas a exclusão também é parte da explicação de um sistema calcado sobre deficiências no acesso à educação, à saúde, ao transporte e à moradia. O jurista Fabio Konder Comparato, autor de “Afirmação Histórica dos Direitos Humanos” (Saraiva), descreve o sistema: “A vida política se assenta em dois fundamentos: a mentalidade social e o sistema de poderes. No Brasil, ambos são desfavoráveis à política de respeito aos direitos humanos. Nossa mentalidade coletiva é tributária de vários séculos de escravismo e de exploração dos pobres. Quanto ao sistema de poderes, sempre tivemos um regime oligárquico”.

Diversas iniciativas são apontadas para favorecer a implantação da cultura de direitos humanos. Comparato menciona “introduzir e fazer cumprir instrumentos constitucionais de democracia e de efetiva repressão ao abuso de poder”. Pinheiro defende a legislação dirigida a problemas precisos, como as cotas raciais, porque “as crianças e adolescentes afrodescendentes não podem ficar esperando o “progresso gradual” da cultura antirracista” e a lei Maria da Penha, que pune agressões a mulheres. “Um dos resultados dessa lei é deslegitimizar o machismo pátrio. Ainda que maridos, noivos e namorados continuem matando suas mulheres, noções antigas como a “legítima defesa da honra” foram para o lixo da história.”

O denominador comum das propostas, porém, é a política educacional. Trata-se, nas palavras de Pinheiro, de “incluir a presença transversal dos direitos humanos na educação, desde o primário até o colegial”. Dornelles resume a estratégia: “O tema deve entrar no dia a dia das pessoas. Na TV, nas novelas, no cinema, na propaganda, na música, em todos os espaços culturais e educacionais. A sensibilização da população para os temas emancipatórios de direitos humanos é central. O processo não é linear, com um avanço contínuo e permanente. As políticas educacionais e culturais, com base em princípios de direitos humanos, são fundamentais. Trata-se de definir uma cultura de direitos humanos que se contraponha à cultura da violência e à cultura da exceção”.

Ou seja, a noção de direitos humanos não pode estar ausente do espaço público, onde há debates e onde se tomam as decisões coletivas. Um espaço que, lembra Comparato, “não é sinônimo de estatal. O Estado gere o espaço público, mas não é dono dele”. A ausência dessa noção leva à reiterada apropriação do público pelo privado. Para ilustrar a tendência brasileira de passar ao largo do comum, o jurista cita frei Vicente do Salvador, autor da primeira história do Brasil, em 1627: “Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

A melhora dos indicadores de direitos humanos pode ser lenta e irregular, mas existe. Efeitos práticos do progressivo engajamento brasileiro com os direitos humanos transparecem no relatório de acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (leia mais à página 9). Entre 1990 e 2008, a proporção da população vivendo com menos de US$ 1,25 por dia caiu de 25,6% (mais de um em cada quatro brasileiros) para 4,8%. Os números impressionam, mas não escondem que restam 8,9 milhões de pessoas vivendo na miséria no país, segundo esse critério.

A evolução é heterogênea regionalmente. Enquanto a média nacional de moradias consideradas adequadas era de 65,7% em 2008, o índice era de 55,5% no Nordeste e só 34,5% no Norte. A igualdade racial, apesar da lenta implantação de medidas afirmativas como as cotas no Itamaraty e em diversas universidades, ainda é uma meta distante. A redução da miséria na população negra entre 1990 e 2008 foi significativa, passando de 37,1% a 6,6%. Entre os brancos, porém, foi de 16,5% a 2,8%. A diferença, que era de 124,85%, passou a 135,71%, aumento que não aponta para um país mais racista, mas mostra que até as políticas sociais são absorvidas antes pela parcela da população que já conta com algum privilégio.

Com uma taxa de homicídio de 26,3 por 100 mil habitantes (2007), o Brasil é um dos países mais mortíferos do mundo. O demógrafo José Eustáquio Alves, do IBGE, explica que, como os homens são ao mesmo tempo os maiores causadores e as maiores vítimas das mortes violentas, o país vai se tornando “cada vez mais feminino”: são 4 milhões de mulheres a mais do que homens. Dessa diferença, cerca de 1,6 milhão pode ser atribuído a causas externas, isto é, sobretudo a violência e os acidentes de trânsito.

No campo da violência, um dado é particularmente significativo. Philip Alston, enviado pela ONU ao Brasil em 2008 para investigar execuções extrajudiciais, escreveu em seu relatório que 18% dos homicídios no Estado do Rio de Janeiro tiveram policiais como autores. A violência policial é um ponto sensível da “cultura de exceção” brasileira e exige respostas diretas. O governo fluminense, posto na berlinda pelo relatório de Alston, promete reformular a cultura policial do Estado com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), cujos policiais são recém-formados na academia e, portanto, supostamente livres da cultura tradicional da truculência policial brasileira.

Dornelles adverte que “muitos projetos de formação de uma nova polícia para um Estado Democrático de Direito têm sido experimentados nos últimos 20 anos”. Ele defende o policiamento comunitário, mas considera imprescindível resgatar a história e tratar “os traumas do passado de violações sistemáticas e massivas”. “Precisamos entender a ponte do passado com o presente. Um dos pontos fundamentais é uma política de verdade e memória para que, além da formação técnica de novos agentes policiais, não se repitam as lógicas de desumanização do “outro” e de truculência, arbitrariedade e crueldade”.

Em paralelo à redução da violência, subsiste a fragilidade do direito, enquanto a população não consegue acessar os dispositivos legais que permitiriam punições a abusos. Em 2007, as Justiças estaduais brasileiras tinham taxa média de congestionamento em primeira instância de 80,5%. No Maranhão e em Alagoas, esses índices ultrapassam os 92%. Em outras palavras, apenas um em cada cinco processos presentes na primeira instância dos tribunais brasileiros é julgado anualmente, manifestando a célebre “morosidade” da Justiça brasileira.

“O livre e amplo acesso dos cidadãos ao Judiciário, sobretudo para a defesa do bem comum, é uma exigência fundamental para a existência de uma verdadeira república democrática”, adverte Comparato. “Ora, no Brasil, malgrado alguns progressos recentes, a possibilidade de os cidadãos agirem na defesa desses direitos é mínima.”

Na quarta-feira, a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que processos pela lei Maria da Penha podem ser suspensos por até quatro anos e a punição extinta caso o agressor não reincida. A decisão foi recebida por ativistas como demonstração de que os direitos humanos ainda não são plenamente levados a sério no Brasil. “Dentre os 30 juízes do STJ, há somente cinco mulheres brancas e nenhuma negra. Assim, 83,3% do tribunal é formado por homens. A desigualdade de gênero, raça e etnia nos mostra como a composição das instituições do Estado estão descoladas da representação social”, argumenta Edélcio Vigna, assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Idesc).

Mesmo os desastres naturais, quando atingem as populações em suas casas, são uma questão de direitos humanos. A antropóloga Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) lamenta que a tragédia que abateu a região
serrana do Rio de Janeiro, por exemplo, não seja abordada segundo a perspectiva desses valores. “A análise é que as pessoas constroem em encostas porque conseguem por meio de pressão imobiliária ou porque o poder público autoriza ou fecha os olhos. É um somatório de irresponsabilidades. Mas quem constitui esse somatório, quem o reverte, senão nós mesmos? Se não materializarmos a análise, colocando-a na perspectiva de direitos violados, não vamos sair do ciclo vicioso. A perspectiva é de punição, mas também de educação, alocação e constituição de políticas”, afirma Pietricovsky.

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