Folha Universal
Dia de natal, 25 de dezembro,Belém do Pará, Brasil. O serralheiro Carlos Barros ouve um choro insistente no quintal de casa. Imagina ser o miado de um gato. Mas, ao se aproximar, encontra um bebê,de apenas 7 horas de vida que, tão logo nasceu, foi jogado pela mãe, a babá Elinaura Nascimento dos Santos, de 20 anos – vizinha de Barros –, de um muro de 2 metros de altura. Embrulhado em um saco plástico, o recém nascido,um menino com 2,2 quilos, foi recolhido por bombeiros com escoriações nos braços e na cabeça. Internado no hospital, recebeu alta na semana passada.
O bebê, chamado de Natalino de Jesus, está sob cuidados do Conselho Tutelar, que não decidiu seu destino. Elinaura se apresentou à polícia e foi indiciada por tentativa de homicídio qualifi cado e dolo eventual – quando há intenção de matar. O Ministério Público irá apreciar o inquérito antes de encaminhá-lo à Justiça. Ela deu à luz às 20h da véspera de Natal.
Embrulhou o filho num saco plástico e o jogou pelo muro, pois temia ser rejeitada pela mãe, a avó do bebê, que mora no Maranhão, e que havia lhe avisado para não engravidar em Belém, onde trabalha na casa de parentes. Com medo, escondeu a gravidez até a hora do parto.Teve o filho sozinha. Cortou o cordão umbilical antes de jogá-lo no quintal do vizinho. Agora, ela diz que quer cuidar do menino,antes indesejado.
O caso não é único. Eles se multiplicam pelo País e muitas vezes são vistos como fatos isolados. Não são. Histórias trágicas como a de Elinaura e seu filho e de dezenas de outras mulheres, a maioria pobre,excluída e desamparada se repetem constantemente. São vítimas da desinformação, do descaso, da ignorância, do preconceito e da hipocrisia, como avaliam especialistas. “É preciso pensar sobre o que levou a mulher a praticar esse ato. Ela pode ter pensado que com um filho não poderia mais trabalhar, ter pensado no preconceito.
É claro que ela poderia ter utilizado outros meios, procurado ajuda. Mas como? Onde? Temos uma sociedade que simplesmente critica e julga”, diz Leila Regina Lopes Rebouças, assistente técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria e coordenadora do Fórum de Mulheres do Distrito Federal. “Não é à toa que temos tantas crianças encontradas em lixeiras. É hipocrisia. É preciso parar de criticar e colocar o aborto como algo criminoso e refletir sobre o direito das mulheres de serem mães ou não”, diz Leila, lembrando da quantidade de mulheres que morrem no País em clínicas clandestinas para a interrupção da gravidez.
A estimativa do Ministério da Saúde é de que os abortos são a causa de 15% da mortalidade materna hoje. Em 2009,os realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), permitidos quando não há outro meio para salvar a vida da mãe ou para vítimas de estupros, foram 1.850. Não há uma estimativa oficial de quantos clandestinos são realizados, mas um indicador é o número de curetagens,procedimento relacionado a abortos espontâneos ou provocados: só em 2009 foram 183,6 mil, dez vezes mais que o de abortos legais.
De acordo com pesquisa feita pelo Ibope a pedido do Governo Federal uma em cada sete mulheres de 18 a 39 anos já abortou no país. Se a estimativa for correta,o número de mulheres que já abortou pode chegar a 5,3 milhões.Muitas sem condições ou acompanhamento médico adequado, sob risco de contrair doenças ou infecções.
“Elas acabam maltratadas,descriminadas. Muitas das vítimas de aborto clandestino morrem”, ressalta Leila. “No Brasil, a Igreja Católica impede que esse debate avance. Muitos países de maioria católica e evangélica avançaram na legislação e o aborto foi legalizado (veja quadro na pagina 11). Isso não significa que as mulheres vão engravidar pensando em abortar. Nenhuma mulher planeja isso”, destaca.
Carmen Hein de Campos,mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Direitos Sexuais e Reprodutivos pela Universidade de Toronto, Canadá, escreveu sobre o que considera a irracionalidade da criminalização.
“São as mulheres jovens e pobres que se submetem a abortos que põem em risco sua saúde e sofrem com a falta de acesso a informações sobre saúde sexual e reprodutiva,métodos para prevenção à gravidez indesejada”, explica. Para Carmen, há um contraste “com jovens ricas que procuram clínicas clandestinas que oferecem aborto a preços altíssimos, mas com mais segurança. Essa diferença na condição econômica é responsável pelos riscos à saúde das mulheres de classes sociais menos favorecidas e pelos gastos do SUS com o pós-abortamento, tornando a ilegalidade ainda mais perversa”.
A legalização pura e simples do aborto como forma de diminuir o número de abandonos não é consenso. De acordo com a psicóloga Lidia Weber, da Universidade Federal do Paraná, é preciso, antes de pensar em aborto, refletir sobre como prevenir e criar estratégias de distribuição de renda, educação e valorização da família. Ela diz que as mães que abandonam os filhos não percebem o sentido da família. “(são mulheres) que foram negligenciadas psicologicamente, foram punidas fisicamente, não aprenderam a amar uma criança, pois nunca foram amadas. É preciso um sentido de família que ensine o afeto”. afirma Lídia.
Enquanto as soluções não avançam, as histórias de abondono se repetem. Em Salvador, no último dia 29, uma mulher foi presa sob suspeita de matar a filha recém-nascida. Logo após o parto, ela teria deixado abandonado o bebê em uma sacola em um terreno baldio. O caso foi descoberto porque ela passou mal e, no hospital, médicos constataram o parto recente. Em Guarapari (ES), um bebê foi encontrado em uma sacola de supermercado no meio de uma rua, enrolado em panos. A criança, uma menina recémnascida, sobreviveu.
Na região de Ribeirão Preto,interior paulista, há quatro registros de abandono nos últimos 2 anos. No caso mais recente, o bebê, que já estava morto, foi achado após ser atingido por um cortador de grama.Em Minas Gerais, dois casos se tornaram marcantes. Em 2007,uma mãe foi suspeita de jogar a filha nas águas poluídas do rio Arrudas, em Contagem.
A acusada, Elisabete Cordeiro dos Santos, de 25 anos, disse que só jogou a criança porque achou que estivesse morta. Ela teria confessado à polícia que tomou remédios para forçar o aborto.
Um dos casos de maior repercussão aconteceu em 2006, quando uma menina de 2 meses foi colocada em um saco de lixo e jogada pela mãe na lagoa da Pampulha, um dos principais pontos turísticos de Belo Horizonte. Ela foi achada com sinais de afogamento, mas sobreviveu.
É preciso discutir
No Brasil, a discussão sobre a legalização do aborto caminha a passos lentos. A lei brasileira sobre a prática se assemelha com a de países africanos, como a Nigéria, Angola e o Sudão, onde a interrupção da gravidez indesejada é considerada crime contra a vida. Mas a falta de diálogo pode ter consequências graves.
Entre as brasileiras,uma em cada dez mulheres mortas em 2009 em decorrência de problemas na gestação sofreu um aborto, espontâneo ou provocado, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. O SIM revela ainda que 2.010 mulheres que abortaram morreram nos últimos 15 anos. E o pior: esses são os casos que chegaram a
os dados da rede pública de saúde.
Na clandestinidade, muitas mulheres morrem sem entrar nas estatísticas oficiais.A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), desenvolvida pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, mostrou que metade das mulheres que já fizeram um aborto buscou atendimento na rede de saúde em razão de complicações. “É possível que essas mulheres estejam abortando sob condições de saúde precárias, uma vez que grande parte delas tem um baixo nível educacional”, conclui a PNA. Segundo o estudo “World Population Policies 2009”, da Organização das Nações Unidas (ONU), pelo menos 47 nações de seus 192 membros liberaram condições para a prática do aborto desde 1996.
No mesmo período, 11 tornaram suas leis mais restritivas. Só Chile, República Dominicana, El Salvador, Vaticano,Malta e Nicarágua não permitem o aborto em nenhuma circunstância. “Em 2003, cerca de 42 milhões abortos induzidos ocorreram no mundo, quase metade foi realizado utilizando procedimentos inseguros”, diz o relatório da ONU.
No Brasil, o aborto é considerado crime previsto no Código Penal, com pena de 1 a 3 anos de prisão. Só não é punível pela Justiça se a vida da gestante estiver em risco e não houver outro meio de salvá-la ou se a gravidez é resultado de estupro. Na Europa e Ásia, a maioria das nações permite o aborto em mais hipóteses do que a lei brasileira. Para a ONU, as restrições em relação à medida estão relacionadas ao grau de desenvolvimento dos
países: os mais desenvolvidos permitem o aborto, pelos mais variados motivos.
Embora a adoção seja uma saída para diminuir as consequências danosas de mães que abandonam filhos, a disponibilidade de uma nova família para a criança no País só é considerada após esgotadas todas as possibilidades de acolhimeto por parentes. Segundo Sheila Daniela Medeiros dos Santos, pedagoga e doutora em psicologia educacional, nos anos 90 os juizados de infância e algumas associações de pais adotivos no Brasil aprofundaram esta ideia, dando ênfase no princípio de convivência familiar em vez da adoção.
“Escândalos ligados à adoção internacional durante os anos 80 chamaram a atenção para o perigo de a adoção ser um pretexto para desapropriar famílias pobres de seu mais precioso recurso: os filhos”, diz Sheila. Segundo o artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente, nenhum pai ou mãe pode ter seu poder familiar destituído por causa da pobreza.
De acordo com o último balanço do Cadastro Nacional de Adoção, do Conselho Nacional de Justiça, existem 7.949 crianças brasileiras aptas a serem adotadas. Ou seja, se encontram destituídas do poder familiar. Os dados, referentes ao dia 3 de dezembro de 2010, indicam também que há 30.378 pretendentes à adoção já cadastrados.
São Paulo permanece na liderança como o Estado com maior número de pretendentes à adoção: 8.020 para 1.538 crianças e adolescentes cadastradas. As mulheres interessadas em entregar os filhos para adoção devem se encaminhar à Vara da Infância da cidade.
Escolha de ministras pode ajudar debate |
A presidente Dilma Rousseff (PT) escolheu duas mulheres para ocupar ministérios estratégicos na discussão sobre direitos da mulher no início de seu governo. As deputadas federais Maria do Rosário (PT/RS) e Iriny Lopes (PT/ ES) foram nomeadas para comandar, respectivamente, o Ministério dos Direitos Humanos e a Secretaria Especial de Ambas defendem que o tema seja debatido como uma questão de saúde pública. Em entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, Iriny Lopes afi rmou não ver “como obrigar alguém a ter um filho que ela não se sente em condições de ter”, e ressaltou que “ninguém defende o aborto, trata-se de respeitar uma decisão que, individualmente, a mulher venha a tomar”. A presidente Dilma já disse ser pessoalmente contra o aborto. Também em entrevista à “Folha de S. Paulo”, Maria do Rosário prometeu não “oferecer posições que sejam mais pessoais do que aquelas de trabalho” e também falou entender o problema como “questão de saúde pública”. |