por Veridiana Sedeh – revista Superinteressante
A amizade entre homens e mulheres é rara, difícil e frágil. Ainda assim, tem quem tente. Entenda por que essa relação vai se tornar cada vez mais comum e até necessária
Sérgio e Natália formam um belo casal: são jovens, atraentes, adoram estar juntos. Íntimos, conversam sobre tudo, fazem baladas e viagens e, em 10 anos de relação, nunca se beijaram. Sérgio e Natália são um casal de amigos. Natural para os dois, a relação é vista com ceticismo por quem está em volta – homens, principalmente, custam a acreditar que nunca rolou algo a mais. Sempre que conhecem alguém, a pergunta se repete: “Vocês são só amigos mesmo?”
A frequência da dúvida mostra que nossa sociedade hiperconectada e globalizada ainda é bem conservadora com esse assunto. Em nossa defesa, temos milhares de anos em que simpatia entre sexos era sinônimo de atração sexual e algumas décadas em que pode não ser. É um fenômeno novo, mais recente que a TV em cores. Para ter uma ideia, os primeiros estudos sobre esse tipo de relacionamento são do final do século 20, e ainda não ajudam muito a esclarecer todo o emaranhado de dúvidas – naturais – sobre o assunto. E, se o tema é recém-chegado à ciência, ainda é ignorado pela ficção. Em filmes, seriados e novelas, o casal hetero está sempre destinado à cama ou ao altar.
Mas a amizade entre homens e mulheres existe – e acredite, você ainda vai ter uma.
Um mal degenerador. Até o século 19, assim era encarada a amizade entre homens e mulheres. Segundo Rosana Schwartz, pesquisadora de gênero da PUC-SP, a ciência (influenciada pela moral) da época garantia que as moças, criaturas frágeis, próximas de rapazes tenderiam a histeria ou “desvios de comportamento” – apaixonar-se por um estando prometida para outro, ou, Deus o livre, praticar sexo fora do casamento. O lugar delas era em casa. Para sair, deveriam estar acompanhadas por pais, irmãos ou marido. As que estudavam frequentavam escolas femininas, e as que trabalhavam o faziam separadas dos homens – lavavam, costuravam, cozinhavam. Nesse cenário, além de indesejada, a amizade era quase impossível.
As coisas começaram a mudar nas décadas seguintes, quando homens e mulheres se tornaram colegas de trabalho. “Amizades com pessoas do sexo oposto é um novo fenômeno para adultos. À medida que mulheres e homens alcançam maior paridade de salários, eles estão mais aptos para ser amigos”, afirma Geoffrey Greif, professor da Universidade de Maryland e autor do livro Buddy System: Understanding Male Friendships (“Sistema dos Caras: Entendendo a Amizade Masculina”, ainda sem edição brasileira). O equilíbrio gerado pela independência feminina vai além do campo profissional – quando os salários emparelham, o respeito chega ao dia a dia.
“Passamos por um século inteiro de transformações para chegar ao ponto em que homem e mulher podem ser amigos”, destaca Schwartz. E é aí que as coisas começam a se complicar.
Sexo entre amigos
As barreiras sociais ficaram no passado e homens e mulheres conseguiram se tornar amigos. Só faltou avisar os hormônios.
A tensão sexual está presente em mais da metade das amizades com o outro sexo, revela um estudo com mais de 150 homens e mulheres conduzido por Linda Sapadin, psicóloga e consultora de relacionamentos. Aliás, 6% das mulheres e 7% dos homens admitiram que essa tensão era do que eles mais gostavam nessa relação. Mais homens admitiram ter levado amigas para a cama: o sexo amigo aconteceu para 66% deles e 46% delas. Porém, tanto homens (74%) quanto mulheres (82%) admitiram que o sexo prejudicou a relação. Na pesquisa, alguns home
ns relataram que a atração sexual foi a razão para iniciarem a amizade.
Assim também foi com Sérgio e Natália. Ele queria, mas ela, que já havia perdido um amigo por ter misturado as coisas. Até hoje, Natália diz que não arriscaria ficar com ele, para não correr o risco de arruinar uma amizade que ela valoriza tanto. “A gente brinca que, se um dia a gente vier a ficar, tem que ser para casar.”
Já os universitários americanos não têm essa frescura. Segundo uma pesquisa que ouviu 315 estudantes, metade das suas amizades com o sexo oposto envolve sexo. Dos que transaram com o amigo ou a amiga, 55% afirmaram que o álcool foi decisivo e 60% nunca o/a tiveram como parceiro exclusivo. E, contrariando os resultados da pesquisa citada na outra página, dois terços disseram que o sexo aprofundou a amizade.
Um primeiro olhar nesses números pode até levar a concluir que não, aamizade não existe – é sempre um romance fracassado ou dormente. Mas especialistas dizem que é justamente por causa dessa atração que a amizadepode surgir. Na verdade, mesmo quando não há envolvimento se-xual, pode haver atração. “Eu diria que, num número muito grande de situações deamizade entre homem e mulher que duram bastante tempo, se você for pesquisar a fundo, vai descobrir que no mínimo um deles gostaria de ter alguma coisa a mais com outro”, diz o professor e supervisor da Clínica Psicológica da PUC-SP, Ari Rehfeld. Alguns pesquisadores acreditam que a energia sexual, sem ser levada às vias de fato, pode contribuir para uma maior produtividade, à medida que adiciona energia e interesse ao trabalho. Tudo bem. Agora, vá explicar isso em casa.
Outras alianças
“Amor, vou sair para tomar uma cerveja com um amigo da faculdade” é uma frase que um marido dificilmente vai gostar de ouvir. Com esposas, não é diferente. Por consumirem a maior parte do tempo livre dos envolvidos, relações estáveis e casamento são considerados obstáculos para a manutenção e surgimento de amizades. Também é comum que pessoas comprometidas achem inapropriado ter um amigo próximo do outro sexo. Assim, uma mulher casada que tenha um grande amigo, ou o contrário, tornou-se uma raridade, como comprova um trabalho de Lillian Rubin, autora de Just Friends: The Role of Friendship in Our Lives (“Apenas Amigos: O Papel da Amizade em Nossa Vida”, sem publicação no Brasil). Em entrev
istas com mais de 300 pessoas, ela descobriu que apenas 16% das casadas e 22% dos casados tinham amizades do outro sexo.
Alguns pesquisadores dizem que, embora haja pessoas casadas que têm amigos do sexo oposto, a relação acontece dentro das restrições do casamento ou do trabalho e costuma envolver interações mais superficiais. O pesquisador Greif, por exemplo, é bem realista. Ele tem suas amigas, mas com moderação: “Elas [amizades] normalmente são feitas por meio do trabalho e não de outras atividades. Eu sou casado há 35 anos e não desejo complicar a minha vida”.
Michael Monsour, professor do departamento de comunicação da Univerisidade do Colorado e autor de Women and Men as Friends (“Mulheres e Homens Como Amigos”, ainda não publicado no Brasil), acredita que fazer umamigo do outro sexo quando se é casado ou se tem uma relação estável é muito mais difícil do que continuar se relacionando com os antigos amigos. Na prática, essa nova amizade só tem chance de ir para a frente se o outro membro do casal se aproxima da pessoa. Se não, há uma barreira muito grande.
Sérgio conta que sua relação com Natália não costuma lhe causar dor de cabeça. “Deixo claro para as minhas namoradas a minha relação com ela. No começo, sempre rola um estranhamento, mas se resolve quando elas a conhecem”, diz. Ele conta que geralmente elas se tornam amigas. Já com os namorados de Natália, é comum haver uma resistência maior e já rolou ciúme.
Amiga é pra essas coisas
Mas nem só de complicações vive a amizade entre homens e mulheres: ela também tem suas vantagens. Os benefícios vão desde evitar a solidão a conseguir dicas para conquistar alguém. No estudo de Linda Sapadin, as mulheres listaram como algumas das principais vantagens de sua amizadecom homens ter atividades e discussões “interessantes” e uma outra perspectiva do sexo oposto. Já os homens citaram como pontos positivos poder falar sobre praticamente tudo e ser confortado quando se sentem mal ou solitários. Elas são imbatíveis para dar apoio emocional.
De acordo com Monsour, uma pesquisa mostrou que 73% dos homens e 82% das mulheres recebem suporte emocional de suas amigas, enquanto apenas 27% delas e 56% deles disseram receber o apoio de seus amigos. “Eu penso que homens estão acostumados a ser cuidados por mulheres, suas mães e professoras, e gostam delas como pessoas com quem possam conversar. Mulheres gostam dos homens como amigos porque eles permitem acesso a diferentes atividades e não existe competição”, diz Greif.
O companheirismo entre homens e mulheres solteiros pode muitas vezes assumir contornos de um casamento. “Ela o ajuda a se vestir, a se comportar em determinados lugares ou faz companhia quando ele precisa se apresentar como casal. Ele, por sua vez, conserta o carro dela. Assim, eles vão ocupando papéis que tradicionalmente ou culturalmente são do homem e da mulher, enquanto casal”, relata Rehfeld. A ajuda também é muito comum na hora de arrumar um par. Segundo o autor, algumas mulheres relatam que os homens dão conselhos mais objetivos. É o caso de Natália. “É diferente conversar com o Sérgio e com minhas amigas. Ele tem uma visão de homem, mais racional.Mulher é muito sentimental”, diz ela. “Acho positivo ter uma amiga, tanto porque ela vai me apresentar para as amigas dela quanto para saber como as mulheres pensam. Acho que vale a pena. Todo cara deveria ter uma amiga”, diz Sérgio.
Mais e mais amigos
Se, mesmo com tantas complicações, muitos homens e mulheres já são amigos, tudo leva a crer que mais amizades surgir