Renata Mariz – Correio Braziliense
Sentimento de posse, egoísmo e até uma eventual alteração de personalidade explicam, da parte do homicida, os motivos de um crime passional. Mas ações ou omissões da vítima também podem contribuir para o desfecho macabro de uma relação inicialmente amorosa, advertem especialistas no último dia da série Amor, ódio e morte. O pior erro, segundo o psiquiatra forense Luiz Carlos Illafont Coronel, é negligenciar ameaças. “Não se deve tratar de modo líquido e ligeiro alguém que diz que vai matar ou que vai se suicidar. Isso não é normal. É preciso dar o valor devido aos sinais premonitórios de violência”, avisa o médico, que é membro da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Como o ciúme está quase sempre no centro dos homicídios passionais, outro especialista da psiquiatria forense, Antônio Eça, destaca que é preciso avaliar o momento em que tal sentimento passa do limite. “O ciúme faz parte da condição humana, o problema é quando ele é recorrente. E a pessoa dá meia volta no disco e insiste numa acusação ou suspeita. Começa aí o início da anormalidade”, destaca Eça. Pior é que as mulheres, vítimas do crime passional em mais de 90% dos casos, têm uma predisposição em relevar manifestações de agressividade do companheiro, diz Luiz Carlos. “Por conta de uma questão cultural, elas são patologicamente condescendentes com os sinais”, conclui.
Dedicada ao estudo de crimes violentos, com três livros publicados e serviços prestados à polícia, Ilana Casoy (foto) destaca alguns fatores que contribuem para um assassinato entre casais. “Com base nos casos que já analisei, posso dizer que o patriarcalismo ainda está muito presente. Mas, hoje, numa sociedade altamente competitiva, o dinheiro também exerce grande influência. Então, uma mulher que está empregada e o marido, desempregado, corre mais risco de ser morta pelo companheiro”, diz a pesquisadora. Outra situação que potencializa um homicídio do tipo, segundo Ilana, é um problema sexual por parte do homem. Por fim, completa, o álcool é outro ingrediente quase sempre presente nas tragédias familiares.
Para Eça, é preciso que a vítima, na maioria das vezes mulher, atente-se para a evolução das ofensas e agressões trocadas ao longo do tempo. “Primeiro é um beliscão, um empurrão, um tapa e, por fim, uma facada. Não é responsabilizar a vítima pela morte, porque ninguém tem o direito de tirar a vida do outro. Mas alertar para o nível de deterioração do relacionamento”, destaca o psiquiatra. Luiz Carlos faz coro com o especialista. “Esses casos não ocorrem da noite para o dia, existe uma história anterior”, alerta o psiquiatra da ABP. Prova de que o assassino dá sinais, de acordo com os especialistas, são os registros policiais de ocorrência por ameaças ou agressões que vêm à tona depois da morte consumada. Foi o que aconteceu num caso recente, o de Eliza Samudio. Ela havia formalizado uma denúncia contra o ex-goleiro do Flamengo Bruno, hoje acusado de ter matado a garota.
Qualquer um pode matar?
Matar por paixão ou amor, segundo Eça, é uma alegação para esconder, na verdade, um narcisismo. “Quem ama não mata. A pessoa mata porque se acha Deus, porque não consegue conceber que a outra deixou de querer viver ao seu lado. O amor que o assassino tem é por ele próprio”, explica o psiquiatra. Apesar das críticas ao homicida passional, Eça ressalta que tirar a vida de outra pessoa, um dos mais graves crimes existentes, é o único do qual ninguém pode dizer que está imune de cometer.
Especialistas da psiquiatria e do direito concordam com o polêmico médico. “Por princípios, você pode dizer que não vai subtrair o que é do outro, não vai subornar, não vai prevaricar. Mas que não vai matar, não dá para garantir. Por que você pode se ver numa situação de legítima defesa ou de desequilíbrio”, afirma o defensor público Fernando Calmon, cuja experiência em tribunal do júri ultrapassa 300 casos.
Numa abordagem controversa, Eça considera o homicida uma pessoa “anormal”. “Só se justifica como ato isolado de uma pessoa normal, se o descontrole ocorre no aqui e agora. Peguei minha mulher na cama com o outro, fiquei desesperado, tinha uma arma no local, matei. Mas se ele mata no dia seguinte, ele elaborou, isso já é uma alteração de personalidade”, opina o médico. Eça explica que as alterações podem ter diversos motivos. “Há alterações de nascença e as adquiridas por uma inflamação no cérebro, uma encefalite. Tem também as alterações de conduta e as de fundo psicológico, por traumas. Essa últimas são tratáveis; as outras, não.” (RM)
Três perguntas para Ilana Casoy
Faz onze anos que Ilana Casoy se debruça sobre crimes violentos e matadores seriais, trabalho que culminou em três livros publicados e nas solicitações de auxílio por parte da polícia na apuração de assassinatos nebulosos. Atualmente, além de se dedicar a uma quarta publicação, sobre a qual prefere não adiantar informações, Ilana estuda um fenômeno batizado nos Estados Unidos de femicide. “É o femicídio, ou seja, homens que matam suas companheiras ou ex”, explica Ilana. Ela destaca que até 90% dos assassinatos norte-americanos ocorrem até um ano depois da separação — o que evidencia os cuidados que as mulheres devem tomar mesmo depois de finalizada a relação. Ilana destaca como principal carência do Brasil uma rede de suporte social para vítimas de violência doméstica que vá além da polícia.
Quais os sinais mais frequentes que um assassino passional pode dar à vítima?
Falando em homens que matam mulheres, porque são esses os casos mais comuns, diria que o principal sintoma é a situação de isolamento a que essa mulher é submetida. Aos poucos o homem com o perfil altamente controlador vai isolando-a socialmente. Elas são tiradas do convívio de suas amigas, de parentes. Com isso, viram reféns, porque perdem a capacidade até de raciocinar, de se organizar mentalmente.
Muitas negligenciam esses sinais?
Não diria que negligenciam. O problema é que a definição de violência varia. Um tapa, para alguém que cresceu num lar violento, pode não ser nada. Um empurrão para outra mulher pode ser caso de delegacia. Então deixar essa avaliação por conta das próprias mulheres é muito complicado. Nos Estados Unidos, há centros de atendimento com policiais, psicólogos, psiquiatras, Ministério Público e juízes. Quem chega lá se submete a um questionário científico, que dá uma pontuação. Com base nessa pontuação, é calculado o risco que essa mulher corre de ser assassinada. É algo técnico, não depende de intuição ou discernimento de quem está diretamente envolvido no problema. No Brasil, estamos longe de ter um órgão do Estado para fazer essa avaliação. Aqui só temos a polícia, quando existe.
Não existe consenso sobre a relação entre homicídios passionais e situação socioeconômica…
Estatisticamente falando, nas camadas da população onde a educação é menor, maior é a taxa desse tipo de crime. Mas não podemos reduzir a análise à con
dição educacional ou de personalidade. São fatores sociais, psicológicos, culturais. Agora, é claro que uma pessoa impulsiva tem mais chances de matar alguém, mas não quer dizer que vá fazer. O mais importante é trabalhar essas pessoas, como se faz nos Estados Unidos, país muito avançado nesse tema. Lá, há um suporte social para mostrar como não chegar ao gatilho, ao ponto sem volta. O sujeito aprende que quando ele levanta e começa a andar em círculos é porque está próximo do ponto sem volta. Então é melhor sair, dar uma volta. O questionário de risco de ser assassinada também é outro instrumento que deveria ser transposto para o Brasil, com todas as adaptações que se fizerem necessárias. (RM)