Adriana Bernardes e Mariana Laboissière – Correio Braziliense
O número de vítimas de estupro no Distrito Federal cresceu 59,7% no ano passado em relação a 2008, de acordo com relatório da Polícia Civil. E, das 369 vítimas, 207 tinham até 17 anos, ou seja, 56% dos casos. O crime é hediondo e, em boa parte das vezes, o agressor é o próprio pai, o padrasto ou conhecidos da família.
Ameaçadas e humilhadas, as vítimas nem sempre conseguem denunciar a agressão por meio das palavras. Trancam-se em si mesmas numa tristeza sem fim ou explodem em atos de violência e rebeldia. Sinais difíceis de serem compreendidos pelos pais que, após a descoberta do crime, ainda se culpam por terem demorado tanto tempo para enxergar a verdade.
O abuso sexual contra crianças e adolescentes ocorre sem distinção de classe social, de escolaridade e de cor da pele. Quando é descoberto dentro do próprio lar, o choque parece ser ainda maior. “O chão sumiu dos meus pés e eu não conseguia pensar direito. As palavras da minha filha dizendo ‘foi o papai que me machucou, mamãe’ não saíam da minha cabeça. Ao mesmo tempo era difícil acreditar que o pai, que sempre foi tão presente e carinhoso com ela, seria capaz daquela monstruosidade”, relata Ludmila*, 31 anos, servidora pública e mãe de Iara*, de apenas 3 anos, abusada pelo próprio pai.
Desde a descoberta do crime, mãe e filha recebem acompanhamento psicológico. O pai da garota perdeu o direito de vê-la por ordem judicial e está sendo investigado pela polícia. “Me pergunto como pude ser tão cega. Ela mudou. Estava desobediente, birrenta, agressiva. Se ia brincar, tirava as roupinhas das bonecas. Surpreendi-a manipulando o órgão genital, mas achei que fosse parte do desenvolvimento dela”, relembra Ludmila, lutando para não se culpar pelo que ocorreu.
Apesar de tudo, Iara sente falta do pai e pede para vê-lo. “Eu não posso dizer para minha filha que o pai é um traste. Só espero que no futuro ela entenda que fiz tudo o que podia para protegê-la. Espero que ela sinta que, se estivesse no meu lugar, teria feito a mesma coisa”, diz, aos prantos, a servidora que se preocupa ainda sobre como será a fase da descoberta do amor, do sexo, qual será a visão da filha de homem, pai e marido. “Não dá para saber. Só o tempo dirá se ela conseguirá superar isso.”
O drama da servidora pública exemplifica bem o risco de se traçar um perfil do abusador. “Se a gente cria um perfil, cria também a falsa sensação de que é possível proteger as vítimas de determinado grupo e isso não é verdade. Pode ser qualquer tipo de pessoa, de todos os credos e cores, ricos e pobres”, explica o delegado Stenio Santos Sousa, do Grupo Especial de Combate aos Crimes de Ódio e à Pornografia Infantil na Internet (Gecop), da Divisão dos Direitos Humanos da Polícia Federal.
O abuso sexual é um crime que está intrinsecamente ligado ao segredo e ao silêncio. Não porque a vítima queira, mas porque é forçada a isso. De acordo com o psicólogo Reginaldo Torres Alves Júnior, supervisor substituto e analista judiciário da Área de Apoio Especializado de Psicologia da 1ª Vara da Infância e da Juventude (1ª VIJ), nem sempre a criança entende e rejeita o abuso. “Ele pode ser entendido como um carinho diferente, especial. Quando revelado, o adulto tem mais facilidade em desqualificar a criança, isto é, acredita ser mais provável que ela esteja mentindo”, diz.
De acordo com o delegado do cartório da Delegacia de Proteção à Criança e o Adolescente (DPCA), Alexander Traback, a instauração de inquérito pela entidade se dá quando há o mínimo de indícios de que uma criança foi abusada sexualmente. “Se a criança confirmou a violência, independentemente do laud
o do IML (Instituto Médico Legal) dar resultado negativo, abrimos o procedimento”, esclarece.
O problema, segundo Traback, é que esses crimes, geralmente, são praticados sem testemunhas. “A dificuldade de incriminar o autor se dá porque, normalmente, são pessoas que não têm passagens pela polícia, têm bons antecedentes e emprego fixo. É a palavra de uma criança contra a palavra de um adulto.
Aqui, fazemos cursos de técnicas de entrevista, mas alguns juízes não têm essa expertise. Por esse motivo acredito que devam ser criadas varas especializadas no atendimento da vítima”, finaliza.
“O chão sumiu dos meus pés e eu não conseguia pensar direito. As palavras da minha filha dizendo ‘foi o papai que me machucou, mamãe’ não saíam da minha cabeça. Ao mesmo tempo era difícil acreditar que o pai, que sempre foi tão presente e carinhoso com ela, seria capaz daquela monstruosidade”
Ludmila*, 31 anos, servidora pública e mãe de Iara, de apenas 3 anos, abusada pelo próprio pai
*Os nomes são fictícios para preservar as vítimas e em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente
Palavra de especialista
Conversar é fundamental
“O abuso sexual de crianças e adolescentes é um crime difícil de provar porque não há na Justiça, que eu saiba, um único abusador que tenha reconhecido que praticou o abuso. Ele acha que foi a vítima que seduziu ou alega embriaguez. Não assumem o fato porque isso desqualifica a imagem que têm de si mesmos. O abusador comete o abuso às escondidas, à noite ou quando a criança está sozinha. Ele se aproveita das circunstâncias e depois aparece como o cidadão acima de qualquer suspeita.
É preciso que os pais conversem com as crianças. É importante que, já no primeiro ato do abusador, a criança tenha a confiança em quem a proteja para relatar o ocorrido. As orientações podem começar aos 3 anos de idade. Isso também implica em um pacto dentro de casa entre o casal. É preciso que o assunto faça parte das conversas de namorados, noivos e casados. A escola não é o único capital que um pai dá ao filho. A informação, a garantia da integridade física e a capacidade de diálogo são fundamentais entre casais hetero ou homossexuais. A sexualidade não pode ser um assunto que fique debaixo do tapete.
Não há que se responsabilizar a criança pela denúncia. O responsável por educar é o adulto. O que a gente indica é diálogo entre o casal. Po
rque o adulto tem desejo. Não é a questão de negar o desejo, mas se ele surgir, sublimar e respeitar a criança na sua beleza e no seu desenvolvimento. Não se pode colocar essa como uma relação anjo com anjo. É uma relação de gente.
Vicente Faleiros é assistente social e professor da Universidade de Brasília e da Católica.