Comunidades Negras Rurais e o Direito ao Território Étnico

Jackeline Florêncio – Terra de Direitos

As comunidades formadas pelos escravos que fugiram do regime escravista ultramarino e resistiram à recaptura, enquanto construção e realidades simbólica e histórica, estão presentes nas diversas regiões do Novo Mundo em que tal regime foi implementado.

 

Após décadas de esquecimento, as comunidades quilombolas passaram, no período da redemocratização do país, na década de 1980, por um processo de afirmação de sua identidade e etnicidade. O auto-reconhecimento da condição de quilombola asseverou uma etnogênese ressaltada no vínculo visceral entre a identidade étnica e o território. Esse processo revestiu-se no pleito pelo reconhecimento oficial de seus liames de ancestralidade e mais precisamente pelo direito ao território étnico, que tradicionalmente ocupavam. Nesse contexto, o termo “Quilombo” foi ressemantizado, transcendendo o viés limitadamente historicista, de forma a abarcar outras territorialidades específicas, não mais voltadas para o passado, mas ressaltadas na perspectiva presente.

A Constituição de 1988, sob os marcos da plurietnicidade e multiculturalidade, garantiu no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva de seu território, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, e caracterizando-os enquanto sujeitos coletivos de direitos. O reconhecimento oficial da legitimidade dos territórios quilombolas foi firmado não apenas pelo art. 68 do ADCT, mas também por outros dispositivos e Tratados Internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que preconizam esse direito e que já foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.

Porém, a despeito das garantias constitucionais de preservação dos modos peculiares de criar, fazer e viver dessas comunidades e conseqüentemente de preservação dos seus territórios, são pouquíssimos os territórios quilombolas que já foram regularizados. Tendo em vista esse baixo número de titulações desde promulgada a Constituição, faz-se necessário identificar as dificuldades legais, operacionais e burocrático-administrativas no acesso ao território, bem como é necessário avaliar se as políticas públicas de titulação têm sido eficazes para cumprir com aquilo a que se destinam.

O direito humano ao território é condição imprescindível de povos tradicionais, como as comunidades quilombolas no Brasil, para consecução de seus demais direitos humanos. As comunidades formadas pelos escravos que fugiram do regime escravista ultramarino e resistiram à recaptura, enquanto construção e realidades simbólica e histórica, estão presentes nas diversas regiões do Novo Mundo em que tal regime foi implementado. São os quilombos no Brasil; palenques na Colômbia; comunidades de cimarrones, em diversas partes da América Espanhola. Em alguns desses países, acordos de paz foram firmados com os negros libertos e foram garantidas conquistas políticas e territoriais. No Brasil, apenas na Constituição Federal de 1988 a plurietnicidade do estado nacional viu-se refletida, bem como a garantia de povos tradicionais, dentre elas as comunidades negras rurais descendentes dos antigos escravos, dos seus modos peculiares de criar, fazer e viver e principalmente seus territórios étnicos, o que faz da articulação dessas comunidades, aqui, um fenômeno relativamente recente.

Advogada da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos.

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