MÉXICO: A difícil existência das abandonadas

Johanna Romberg – Revista Geo

Ser mulher no estado mexicano de Oaxaca quer dizer, principalmente, esperar. Esperar por maridos, irmãos e filhos que trabalham nos Estados Unidos, frequentemente durante anos a fio. As mulheres ficam para trás, com as crianças e os idosos; com trabalho dobrado e muitas saudades. Como será sociedade em que as mulheres convivem apenas entre si?

 

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Há 8 dias, o marido de Florentina Gaspar partiu para os Estados Unidos. Até que ele envie dinheiro pela primeira vez, a jovem, de 27 anos, alimentará seus 5 filhos com o dinheiro ganho com a venda da lenha que ela mesma colheu Esther Cruz (à direita) embala com seus familiares 300 tortilhas assadas por ela e que um parente levará para Los Angeles: lembranças da terra natal para aqueles que partiram rumo ao Norte

ESTHER E NAOMI CRUZ, ambas de 35 anos, moram em San Marcos Tlapazola, uma aldeia localizada uns 30km a leste da cidade de Oaxaca, na terra natal dos zapotecas. As duas são gêmeas, o que não se percebe à primeira vista; principalmente quando estão no círculo convívio entre suas primas e vizinhas. As mulheres de San Marcos são muito parecidas entre si: todas usam tranças entremeadas por fitas coloridas e os mesmos trajes típicos, compostos de vestidos em cores vivas e aventais costurados de acordo com um molde único. San Marcos é uma aldeia de mulheres, idosos e crianças. Da população total da comunidade, 3.200 pessoas, cerca de 2.000 emigraram para os Estados Unidos nas últimas décadas.

Os irmãos de Esther e Naomi também vivem lá: cinco irmãos mais velhos e uma irmã. Todos trabalham em um restaurante americano, sugestivamente chamado de Oaxaca Grill, e que em emprega ao todo 47 pessoas de San Marcos.

Há pouco tempo, o filho de Naomi, Aaron, também foi parar lá. Em fevereiro de 2008, ele embarcou junto com um tio em um avião para Tijuana, na fronteira mexicano-americana e, a partir de lá, chegou clandestinamente aos Estados Unidos com a ajuda de um coyote, gíria para a pessoa que atravessa imigrantes ilegais pela fronteira entre os dois países.

Aaron tem 17 anos.

Naomi admite que temeu por sua segurança. A árdua caminhada de vários dias através do deserto. O risco de ser pego em flagrante pela guarda fronteiriça americana. “Mas então, uma semana depois da decolagem, finalmente veio o telefonema”, conta ela, e seu sorriso revela ainda hoje o alívio que certamente sentiu na época.

Estamos sentadas diante da casa de Esther, com o olhar voltado para um tapete de espigas de milho recém-colhidas, que secam ao sol quente de novembro. Tudo à volta está silencioso. Só se escuta o grulhar dos dois perus que perambulam pelo mar de espigas. De vez em quando, a velha señora Cruz grita alguma coisa pela janela da cozinha e uma de suas duas filhas responde. Não compreendemos do que se trata: as mulheres de San Marcos só conversam entre si no idioma zapoteca.

Porém, mesmo quando falam espanhol, sempre temos a impressão de estarmos perdendo informações importantes.

Como uma mãe é capaz de, literalmente, mandar seu filho menor de idade para o deserto, a fim de lavar pratos em uma região a 3.000km de distância? Como é possível manter um casamento com um homem que só se vê a cada três anos durante algumas semanas? Se é que se veem de fato. Como é possível manter unida uma família, cujos membros vivem a milhares de quilômetros de distância, e isso durante anos a fio?

Naomi admite que se preocupa com Aaron. “Mas ele telefona toda semana e garante que está passando bem. Que o trabalho no restaurante é menos pesado que aqui, na lavoura”.

E você, como se sente? Não sente falta dele? Não está triste que ele esteja tão distante? “Sim”, responde Naomi baixinho. E se cala. Em seguida, ela passa sua grossa trança pelos olhos, levanta e entra na casa.

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A vida continua em San Marcos Tlapazola, apesar do permanente êxodo: as gêmeas Esther (à esquerda) e Naomi Cruz cuidam do reabastecimento de bebidas em uma festa de aniversário

San Marcos Tlapazola é uma aldeia bonita, localizada aos pés de uma cadeia de montanhas, diante da qual se estende uma vasta planície de lavouras de milho, hortaliças e agaves (sisal). Enormes cactos saguaro margeiam a estrada até a aldeia.

As casas são feitas de pedras e a praça diante da igreja foi recém-calçada. As pessoas nas ruas, em geral mulheres, cumprimentam agradavelmente todos os estranhos. Ninguém tem aparência desmazelada ou faminta; ninguém anda descalço.

E nada deixa transparecer porque quase 75% de todos os homens abandonaram definitivamente a aldeia, nem por que, até hoje, todos os anos, uma geração inteira de jovens parte, como se estivesse em fuga, assim que se encerra a grade escolar.

Quando perguntamos, Esther, Naomi e suas vizinhas só dão de ombros: como se quiséssemos saber por que crianças frequentam a escola, se casam algum dia e depois constroem uma casa.

A emigração para os Estados Unidos já se tornou parte natural do planejamento de vida dos jovens de San Marcos. E talvez seja algo mais: uma prova de maturidade, um ritual de passagem, que conduz para fora da aldeia silenciosa de mulheres e crianças para dentro do mundo dos homens, do trabalho sério, dos dólares, moeda forte.

 

 
Esther corta lenha em uma lavoura nos arredores da aldeia. Seus 5 irmãos emigraram para os Estados Unidos. Junto com sua irmã, ela também tem de cuidar dos pais
Dança em uma festa da organização assistencial Princesa Donají. A entidade media microcréditos para que as mulheres possam se tornar independentes com pequenos empreendimentos próprios

OS MAIS JOVENS PARTEM LOGO AOS 13 ANOS E, 
MUITAS VEZES, FICAM FORA ANOS A FIO

BEM-VINDA, PEQUENA TERESA, Maria, Isabel, Florentina ou Juliana! Você teve muita sorte. Você cre

scerá no seio de uma família amorosa, com um número incontável de tias, primas e madrinhas; você terá fartura de alimentos e poderá frequentar a escola durante seis anos. Tudo isso é muito melhor que na época da sua avó. Mas logo após o seu 14º aniversário, seu caminho de vida enveredará por uma trilha antiga e comprovada.

Quando os meninos da aldeia começarem a te rodear como abelhas que zoam ao redor de uma colmeia.

É claro que você pode rejeitá-los. Mas pense: aos 18 anos, você já será considerada uma velha solteirona em San Marcos. São principalmente as mães que insistem que seu filhos procurem noivas jovens. É o que dita a tradição. E quem se revoltaria contra ela? Certamente não os homens jovens; eles apenas têm pressa para cruzar a fronteira. Em outras palavras: o importante para as meninas é embelezar-se a tempo e dizer “sim” o mais rápido possível.

Seduzir, namorar, noivar, casar: tudo isso tem que acontecer muito mais rapidamente hoje do que ontem. Se você tiver sorte, poderá desfrutar de dois ou três meses para de fato conhecer seu futuro marido. Aproveite-os! Pois logo após o casamento, chegará o momento mais difícil de sua vida até agora. Você acompanhará o seu marido até o aeroporto.

Os próximos anos são relatados em poucas palavras: assar tortilhas, varrer o quintal, alimentar as cabras. Primeiro sozinha; logo mais com um bebezinho amarrado em um canguru.

Não tenha medo. Seu marido cuidará do bem-estar de vocês. Ele lhe enviará dinheiro todos os meses; tanto que, no decorrer de alguns anos, você até poderá construir uma casa para sua família. E será uma casa completamente diferente daquela em que seus pais e avós cresceram. Não será um barraco com paredes de palha, mas um sólido bangalô de pedra. Você dormirá em uma cama de verdade, com um colchão, ao invés de esteiras de palha de milho. E algum dia, talvez, você até tenha um aparelho de TV e uma geladeira cheia de carne, leite e limonada açucarada.

Com certeza uma de suas muitas tias terá um telefone, como Esther. E então você vivenciará, desde pequena, as jovens esposas que se reúnem todos os domingos diante do aparelho, embelezadas e com as tranças recém-penteadas, para aguardar o telefonema de seu señor. Escute muito bem o que elas têm a dizer.

“Diga, já devo começar a semear ou seria melhor esperar mais uma semana?”, “Precisamos de ajuda na colheita, qual dos nossos vizinhos devo procurar?”, “De que cor devo mandar pintar as paredes da nossa casa?”, “Amanhã à noite haverá uma dança na praça, posso ir?”.

Você não precisa conhecer as respostas FIELpara compreender o que, não só em San Marcos, é uma lei não escrita: que, mesmo quando se vive a 3.000km de distância, um homem mexicano continua sendo o senhor de sua casa. Sem a sua devida permissão, uma mulher de respeito jamais pisará fora de casa. Mas se ainda assim o fizer, a sogra imediatamente tratará de passar a informação adiante, para a Califórnia ou para o Oregon.

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Entre os emigrantes, encontra-se Aaron, o filho de 17 anos de Naomi Cruz. A foto foi tirada em seu casamento, há 20 anos. Logo depois das núpcias, seu marido foi pela primeira vez para os Estados Unidos

“ESTADOS UNIDOS”, esta é uma das expressões mais evitadas em San Marcos Tlapazola. Quando as mulheres falam sobre seus maridos emigrados elas dizem apenas: “Ele foi para o Norte”. Isso soa como se a Califórnia, o Texas e o Oregon ainda se localizassem em território nacional mexicano: acessível a qualquer pessoa, sem nenhum risco ou esforço. Como se a ausência dos homens fosse apenas um incômodo provisório, que pudesse ser remediado a qualquer hora.

E durante muito tempo de fato foi assim. Nos anos de 1980, ainda era possível viajar sem problemas de Tijuana a San Diego sem os necessários documentos validados. Naquela época, os homens de San Marcos partiam na primavera, quando na Califórnia começava a estação de construção civil e o trabalho nas lavouras, e retornavam para casa no Dia de Todos os Santos (1º de novembro). Mas no decorrer da década seguinte, os Estados Unidos começaram a fortificar sistematicamente as barreiras em sua fronteira meridional. Isso não apenas tornou a entrada dos ilegais mais perigosa, principalmente deixou-a também mais cara: o coyote que cuidou da travessia de Aaron exigiu US$ 2.500,00 (mais de R$ 4.400,00); desde então, dizem que os preços já dobraram.

Um homem que parte hoje de San Marcos sabe que levará anos para poder pagar sozinho uma soma dessas. E a mulher que ele deixa para trás sabe que a despedida será por tempo indeterminado.

 

… E SEMPRE A CONSTANTE ESPERANÇA DE QUE O MARIDO SEJA FIEL

Duas amigas sob o mesmo teto: ainda uma exceção nas aldeias tradicionalistas. Felicitas e Cristina resolveram morar juntas depois que foram abandonadas por seus maridos

UMA CANTIGA DE NINAR não é um prognóstico do futuro, mas há algo, pequena Florentina, Cristina, Maricela, nós já podemos prometer agora a você, como a todas as outras meninas de San Marcos: cedo ou tarde vocês encontrarão Lilia Mendoza. A advogada, de 53 anos, dirige a Organización Princesa Donají, uma rede de mulheres que cuida principalmente dos familiares dos emigrados. Com meios financeiros modestos e grande idealismo, asprincesas, como elas próprias se denominam, proporcionam ajuda para a vida cotidiana: elas agenciam microcréditos para a abertura de uma lojinha, a aquisição de uma máquina de costura ou apenas a compra de uma cabra prenhe que, com o tempo, poderá gerar um pequeno rebanho. Com isso, as mulheres que vivem sozinhas não conquistam apenas um espaço para atividades financeiras, mas também a coragem de iniciar uma atividade junto com outras.

Atualmente, a organização, batizada com o nome de uma mítica princesa zapoteca, conta com mais de 8.000 membros, de 160 povoados de Oaxaca. Sua diretora, Lilia Mendoza, é uma das poucas estranhasque desfrutam de confiança até mesmo em aldeias remotas e ferrenhamente tradicionais, como San Marcos. Algumas princesas já participam de reuniões de alguns conselhos comunitários locais. E Lilia se orgulha desses avanços.

Mas quem a ouve, nota que em sua voz surge, ocasionalmente, certo tom de impaciência, amargura e resignação. E isso tem a ver com a insistência cega em tradições e caminhos de vida, que, muito provavelmente, produzirão apenas pessoas pobres, solitárias e infelizes.

Por exemplo, Luisa, de Ixtlahuaca: “Ela vendeu sua vaca, seus porcos e, no fim, hipotecou até sua propriedade para financiar a passagem de fuga de seu marido para o Norte. Durante anos ela e o filho tiveram de se alimentar de tortilhas, pimentas e gafanhotos torrados. E depois? Seu marido achou uma nova mulher lá nos Estados Unidos, e hoje Luisa está só, sem um tostão sequer no bolso”.

Há alguns anos, Lilia vem observando nas aldeias

próximas a Oaxaca uma nova e bizarra forma de possível enlace: a apresentação de noivas por vídeo. Como cada vez mais homens jovens temem a viagem de volta à sua aldeia natal devido à intensificação dos controles na fronteira, suas mães estão se encarregando da escolha de candidatas adequadas a noivas. “E as jovens não se fazem de rogadas por muito tempo, porque o que todas elas mais querem é se casar, o mais rápido possível! Portanto, elas se enfeitam e se sentam diante das câmeras. As mães enviam os vídeos aos Estados Unidos e alguns meses depois, a garota festeja seu casamento com um homem que viu pessoalmente pela primeira vez há apenas alguns dias”.

O suspiro de Lilia soa quase como um soluço.

“Alguns meses ou anos depois ela está lá, sozinha, com nada além de um filho e a esperança de um pouco de ajuda das princesas“.

Não tema, pequena Estela, Isabel, Maricruz. Em San Marcos isso ainda não aconteceu. Aqui, as antigas tradições se mantêm em grande parte intactas, Lilia nos confirmou isso. E mesmo que os homens praticamente não voltem mais para casa, as mulheres ainda assim podem retirar todos os meses seus US$ 100,00 ou US$ 200,00 do banco. Essa quantia é suficiente para se levar uma vida razoavelmente segura e bem alimentada.

Além disso, parece que as mulheres de San Marcos firmaram um pacto silencioso: reclamar sobre a falta dos homens, somente por motivos rotineiros e práticos. Palavras como ‘saudade’ ou ‘solidão’ devem ser evitadas a todo custo. Termos como ‘amor’, ou até ‘sexo’ são tabus tanto quanto ‘Estados Unidos’.

Aquelas que ainda assim querem falar sobre esses assuntos, o fazem em comentários secundários, irrelevantes, em voz baixa. E jamais sem antes olhar ao redor, rapidamente, para ver se tem alguém escutando.

“Vocês sabiam que essa prima, aquela vizinha tem um amante? Dizem que é casado; ela o encontra às escondidas, em uma daquelas novas construções vazias que há anos aguardam o retorno de seus proprietários. Não, não me perguntem qual é o nome dele! E também não contem a ninguém de quem escutaram isso”.

“Vocês sabem daquelas duas mulheres que recentemente se juntaram, com seus filhos, netos e rebanhos de cabras? As duas têm mais de 40 anos; seus maridos as abandonaram há anos. Dizem que as duas até dividem a cama e que uma tem os cabelos curtos e a outra usa um sombrero, como um homem. Não, elas não vivem aqui em San Marcos! Mas em outra aldeia, perto de Oaxaca, como é mesmo o nome?”

Dana Romanoff Dana Romanoff
Celestina Lura se sente só. De sua família só ficou uma neta, que não se importa com ela. “Eles me abandonaram”, queixa-se a velha senhora, “ou partiram para o Norte ou morreram” Quando o marido emigra, em geral a mulher tem que trabalhar o dobro: tanto no campo como em casa. Felicitas Contreras contratou uma ajudante para cuidar de seu rebanho de cabras

QUEM TRANSITA MUITO POR TERRA, como Lilia Mendoza, acaba, com o passar do tempo, escutando muitas histórias desse tipo. E logo conclui que todas têm uma coisa em comum: as mulheres que as revelam nunca se esquecem de frisar que elas desaprovam profundamente quaisquer aventuras e experiências de relacionamentos do gênero. E também nunca deixam de assinalar que essas formas de conduta são uma exceção em suas aldeias; e que elas, mesmo diante da ausência do marido, são intimamente ligadas a eles, não largarão dele por nada nesta vida.

Nenhuma mulher nos transmitiu esta mensagem tão categoricamente como Yolanda Hernández, de San Pablo Huixtepec. Aos 46 anos, ela é uma mulher bonita, cheia de dignidade, uma verdadeira señora; nada nela sugere que, como suas vizinhas, esfregue panelas todas as manhãs e amasse massa de farinha de milho. Sua casa está pintada em um brilhante tom vermelho alaranjado, que parece um grito de exuberância na poeirenta estrada de chão batido às margens da aldeia. San Pablo dista cerca de 30km de San Marcos, um pouco ao sul de Oaxaca de Juárez. Dos cerca de 12.000 membros de sua comunidade, 30% vivem nos Estados Unidos.

Yolanda vive ali com seus dois filhos mais jovens; o mais velho já está há 13 anos nos Estados Unidos e seu marido (com algumas interrupções) há 20. E quando ela fala a respeito dele, é como se desejasse que ele não retorne tão cedo.

O nome dele é Aurélio; seu temperamento é explosivo, sua conduta absurdamente ciumenta. Nos primeiros 8 anos do casamento, ele manteve Yolanda trancada em casa como um pássaro em uma gaiola: “Ele não me deixava sair de casa nem para fazer compras. E quando bebia, me batia”, diz a mulher. Quando ele partiu Yolanda suspirou de alívio. E decidiu aproveitar sua liberdade.

Ela se engajou na comunidade da paróquia e na organização das princesas; e ainda terminou os estudos que havia interrompido aos 14 anos, por causa de seu apressado casamento. Ela se orgulha de si mesma e agora saboreia sua autonomia.

Ainda assim, em todos esses anos jamais olhou para outro homem. “Eu amo Aurélio”, declara ela. “E sinto tanta saudade que quero que ele volte para mim”.

Por fim, ela nos conduz por sua casa, mostra fotos do marido retiradas quase carinhosamente das paredes. Também nos aponta a ceifadeira que adquiriu recentemente: uma surpresa para quando ele voltar. Aurélio gostava de trabalhar na lavoura, lembra ela. E, como se conseguisse sentir nosso ceticismo, acrescenta: “Não existe nada mais importante na vida que uma família unida pelo amor!”. A afirmação soa um pouco decorada, como uma citação de um sermão de domingo. Mesmo assim, brota do fundo de seu coração.

UMA SEÑORA, QUE ABRE UMA LOJA? AINDA IMPENSÁVEL

Oaxaca é rico em tesouros naturais e culturais. Mas 70% de seus habitantes vivem em pobreza extrema. Única saída: emigrar

TODA CANTIGA DE NINAR deveria terminar com uma evocação, um desejo para toda a vida. Nós não queremos, nem podemos lhe prometer o azul do céu, pequena Isabela, Maricruz, Conchita. Isso não seria direito. Além disso, conhecemos muito pouco você e a sua aldeia. Assim, preferimos lhe desejar algo concreto: uma madrinha, alguém em quem você possa confiar, e que também possa admirar. Alguém como Esther.

Esther Cruz doma seus cabelos negros em tranças grossas, como sua irmã; de manhã, como todas as mulheres da aldeia, ela amarra um avental sobre o vestido. Mesmo assim, ela difere das outras. No olhar atento, que demonstra empatia, e que é, frequentemente, divertido. Ela tem o costume de não responder imediatamente a perguntas ou comentários; ape

nas fixa seu olhar no interlocutor durante alguns momentos, em silêncio. Para subitamente irromper em uma risada borbulhante.

Na realidade, e de acordo com as leis da comunidade aldeã, Esther é uma mulher marcada, marginalizada. Ela é solteira. Em outras partes do mundo isso pode ser um bem aceito modo de vida, mas em San Marcos a mulher não casada é considerada antes um acidente da natureza. E é claro que Esther não nos conta como isso veio a acontecer. Quando a questionamos, ela se cala; somente seu rosto revela que não ficou sozinha por livre e espontânea vontade.
Esther teve pouco tempo para conversar conosco. De manhã à noite ela zanzava como uma bola de sinuca pelo quintal, sempre correndo de lá para cá entre a casa, o galpão da cozinha, o redil dos caprinos, sua oficina de costura e a pequena papelaria ao lado do portão do quintal. Ela opera sua lojinha com a ajuda de um microcrédito da Organización Princesa Donají, junto com Naomi e sua prima Juliana, igualmente solteira.

O fato de as três mulheres abrirem juntas um estabelecimento nada tem de tão incomum em si, mas aqui, em San Marcos, provocou uma pequena revolução.

Como pode ser que uma señora, ainda por cima uma solteira, assuma por si só um crédito? Para isso ela não necessitaria da permissão, do apoio, de um parente masculino? E se ela ainda conseguir ganhar algum dinheiro com sua loja: será que pode simplesmente ficar com o lucro para si? Tais perguntas circulavam pelas ruas de San Marcos quando o plano das mulheres se tornou público. Os cochichos não se restringiram aos círculos de vizinhas invejosas, mas também abalaram o conselho comunitário que, na tradicionalíssima San Marcos ainda é reduto dos homens mais velhos. “Elas nos disseram que deveríamos dividir o lucro com elas. Elas visitaram nossas famílias e falaram coisas ruins sobre nós”.
Certa manhã, apareceu um cadeado na porta da loja.

Esther, Naomi e Juliana resistiram e, com a ajuda de Lilia Mendoza, moveram um processo judicial. Após seis desgastantes meses, as três puderam reabrir sua loja.
Este não foi apenas um sucesso extraordinário para elas: também foi uma boa notícia para todas as Teresas, Florentinas, Maricelas que crescerão nos próximos anos em San Marcos. Pois a vitória das três mostra que as rigorosas regras não escritas da comunidade aldeã são perfeitamente alteráveis. E que, com o tempo, as mulheres mais jovens pelo menos terão uma chance de conquistar seus próprios lugares na vida: com ou sem marido.

Dana Romanoff Graças à sua paciente busca, a redatora de GEO JOHANNA ROMBERG (esquerda) encontrou mulheres como ESTHER CRUZ (meio), que, após hesitarem muito, se mostraram dispostas a relatar sua história a ela e à fotógrafa DANA ROMANOFF (direita)

 

 

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