"O Brasil quer mesmo é ser louro", diz pesquisador de desigualdade racial

mario-theodoroConceição Freitas – Correio Braziliense

Em Brasília desde os 17 anos, o pesquisador Mário Lisboa Theodoro, diretor de cooperação e desenvolvimento do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados (Ipea), mora no Lago Norte com a mulher e dois filhos. Apesar de viver numa região administrativa que tem 80% de moradores brancos, 11% pardos e 1% pretos, Theodoro, negro nascido em Volta Redonda (RJ), nunca sentiu o preconceito. “Talvez porque as casas dão para o quintal, não dão pra rua. Então quase ninguém se conhece”. O que impressiona o pesquisador é a Escola-Classe do Lago Norte, criada para acolher os filhos dos moradores, mas que abriga filhos de caseiros, de jardineiros, de empregadas domésticas e crianças da vizinha Varjão. “É um nicho de crianças negras no meio do Lago Norte. Os moradores têm um verdadeiro preconceito com aquelas crianças. Têm medo de serem roubados. Aquela escola é a cara do preconceito brasileiro.”



Economista estudioso da questão racial, ativista dos movimentos negros, Mário Theodoro é o organizador do livro As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil, 120 anos após a abolição, edição do próprio Ipea. Na 12ª e última parte da série Negra Brasília, o pesquisador trata da grande ferida que é questão racial no Brasil, do razoável avanço das políticas públicas, dos limites da abolição e do papel do movimento negro nesse momento. E diz: “O Brasil quer mesmo é ser louro”, para explicar as razões pelas quais há um consenso entre ativistas e pesquisadores de que negro é a soma de preto mais pardo.

Um grande marco
Houve um grande avanço nos últimos 10 anos. Houve avanço no tratamento da questão racial e talvez o grande marco seja a criação da Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial]. Ainda que a atuação política da Seppir seja residual, pequena, pontual, ainda que ela não dê conta da questão racial no Brasil, a criação dela foi o reconhecimento pelo Estado de que a questão racial tem que ser objeto de políticas públicas. Foi esse o grande avanço, por maiores que sejam as críticas. A partir daí, temos que começar a construir.

Revivendo a questão racial
A partir das cotas [raciais nas universidades] começou a surgir uma polêmica nacional. E isso é o mais importante. A questão racial virou uma questão nacional. Todo segmento importante da sociedade sentiu necessidade de se posicionar. O Brasil só debateu verdadeiramente a questão racial entre os anos 1850/1888, e de lá pra cá o tema sumiu das discussões nacionais. As cotas fizeram reviver a questão racial. As pessoas estão indo aos tribunais para dizer que não ou que sim. Esse debate está nos fazendo encarar a questão racial como um problema brasileiro. O silêncio é o pior dos mundos, porque no silêncio é como se o problema não existisse. Agora, teremos que dar respostas a essas questões, formular políticas públicas maiores.

O racismo como ideologia
A abolição não resolveu o problema racial. Ela libertou os negros e nada mais. A abolição jogou no limbo a força de trabalho brasileira, os ex-escravos. E vieram os migrantes para ocupar os novos postos de trabalho. O mito da democracia racial nasceu depois da abolição e o próprio racismo só foi se instalar no Brasil como ideologia dominante depois da abolição. É curioso isso, mas todo pensamento racista surgiu como se fosse uma forma de justificar diferenças e desigualdades a partir da naturalização. Parecia “natural” que os negros continuassem onde estavam, porque eles sempre estiveram nesse lugar. Desde a abolição se instalou o silêncio sobre a questão racial e quem ousasse falar dela era tratado como um caso de polícia. Como foi o caso da frente negra dos anos 30, que foi perseguida e dizimada. Ou de Abdias Nascimento, com o teatro experimental do negro. E lá vinha o discurso de sempre: “Você está querendo dividir, que horror! Vocês estão imitando os Estados Unidos”. Como se fosse uma luta que não tivesse legitimidade. As mulheres podem queimar sutiã, bacana; os sem-terra podem pedir a reforma agrária; mas os negros, do que eles estão reclamando?

O negro não é um igual
Depois da Segunda Guerra Mundial, a reconstrução social europeia foi no sentido de retirar seus iguais de uma situação de penúria. Mas o brasileiro branco não vê o outro brasileiro negro como igual e não se incomoda se determinado grupo passa por privações. Ele não é meu igual…Não existe um apelo moral para a inclusão. São dois grupos, um com direito a tudo e outro naturalmente com direito a nada. É como se fosse natural que os negros sejam pobres.

Chaga aberta
O racismo é uma chaga aberta no dia a dia. A pessoa que sofre racismo, ela sente a ofensa não somente nela mesma. Se eu sou um negro sujo, minha mãe é negra suja, minha avó é negra suja. Então é uma chaga inominável e essa chaga está no cotidiano, só que está velada, mas ela existe o tempo todo. Antônio Candido disse, recentemente, que o racismo diminui os dois lados, diminui quem sofre a ofensa porque a pessoa é diminuída diretamente e diminui quem o pratica, porque demonstra que é incapaz de ver a alteridade, é uma pessoa que estreita o mundo. O Brasil criou gerações de racistas. E continuamos a fazer isso com nossas crianças. Porque ninguém nasce racista. As crianças pequenas se abraçam, se beijam, mas à medida que o tempo vai passando ela vai aprendendo a ser racista.

Negro, principal interlocutor
É a primeira vez que o movimento negro é o principal interlocutor da questão racial. Nos debates abolicionistas, havia os intelectuais urbanos do Rio de Janeiro, o pessoal de São Paulo, cada um tinha uma ideia, mas os negros eram minoria na discussão. Agora o movimento negro entra como interlocutor prioritário.

Pretos pardos = negros

Negros e mulatos têm um sofrimento racial muito parecido, embora os negros sofram um pouco mais. Mas qualquer mulato que ouse sair da sua posição social sentirá que a questão racial fala mais alto. Alguém até pode dizer que é moreninho, mas a polícia vai vê-lo como negro. Um mulato pode até dizer que não é negro, mas na hora H, numa briga com um branco, ele vai ser chamado de crioulo. Juntar pretos e pardos numa só classificação, a de negros, é uma escolha política, sem dúvida. É um modo de dizer que estamos todos juntos, que sofremos o racismo juntos, que temos um problema a enfrentar juntos e que vamos enfrentá-lo juntos. Porque, ao final, o Brasil quer mesmo é ser louro. Ele não quer ser moreninho, ele não quer ser pardo. E se o ideal é ser louro, então mulatos e negros estamos juntos. O fato de ser mulato não leva alguém para a tevê. Nas novelas, quem tem alma são os louros de olhos azuis. Tudo isso faz com que o movimento negro chame todo mundo [pretos e pardos].

Professor, crítico literário, é um dos maiores intelectuais brasileiros do século 20



PARA LER
As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição — Organização de Mário Theodoro, edição Ipea. Textos de Luciana Jaccoud, Rafael Guerreiro Osório e Sergei Soares que analisam a relação
entre a questão racial, como se deu a passagem da escravidão para o trabalho livre e a precariedade do atual mercado de trabalho.

JOAQUIM NABUCO
1849/1910

Se a abolição se fez entre nós sem indenização, a responsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas ao partido da resistência [ao abolicionismo]. O meu projeto primitivo, de 1880, era abolição para 1890 com indenização

Minha formação, Editora UnB, 1981, página 91

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