Eu hoje chorei muito. Eu sei que ninguém tem nada a ver com isso, mas a minha dor foi muito grande quando li no jornal O Globo que uma garota havia sido morta por pancadas do seu pai, porque ela estava namorando em praça pública.
O que aconteceu com ela me remeteu ao que aconteceu comigo aos 12 anos e comecei a namorar com um primo, 6 anos mais velhos que eu. O namoro começou num dia de festa na cidade. Uma cidade do interior de Goiás. A festa era na rua em frente a minha casa, aonde nos encontramos e acabamos nos sentando no seu carro para poder conversar tranquilamente sobre o que sentíamos em relação um ao outro. Estávamos tão encantados, de mãos dadas, que nem percebemos o final da festa. Quando desci do carro minha família já estava me procurando, algumas pessoas nervosas. A ‘fantasia’ geral era que eu tinha ido para a lagoa, lugar proibido porque toda moça que ia namorar ali estava completamente perdida para qualquer possibilidade de casamento.
Parece que havia também uma preocupação em relação a este rapaz com quem eu estava. Talvez por pressentimento, porque nesta época meu primo ainda não era o que veio a ser mais tarde: uma pessoa com várias temporadas na cadeia. Era, naquela época, um rapaz filho da ‘melhor’ classe media da cidade, sempre presenteado com o último carro esporte, estudante do melhor colégio da capital e outras coisas valiosas naquele interior.
Mas o fato é que fui recebida aos gritos e ameaças da chegada do meu pai para me dar um corretivo. Minha memória tem muitas lacunas, mas me lembro que neste dia, sem pressentir o que viria, vesti a minha melhor camisola, que era azul clara, cheia de preguinhas. Possivelmente porque para mim ter começado aquele namoro merecesse algum tipo de comemoração, como vestir a camisola mais linda para dormir! Corte. A lembrança seguinte é de minha mãe, meu irmão mais velho, não sei se outras pessoas estiveram ali sentadas no sofá. Eu, levando uma surra memorável do meu pai. Pontapés, puxões de cabelo, cinturão… tudo o que se possa imaginar de mais bruto. No final de todas as pancadas a minha mais linda camisola azul ficou em frangalhos. Disso e das dores sentidas me lembro bem. E sempre me recordo das pessoas que assistiam a aquele ato de violência. Olhavam atentas, quietas, caladas, aprovando, compartilhando. Eu nunca consegui distinguir o que doía mais em mim em todas estas lembranças.
Eu hoje chorei muito porque esta moça que morreu por estar começando a namorar – que lindo poderia ser na vida de qualquer pessoa! – provavelmente não era uma moça com tanta saúde, resistência e raiva como eu naquele momento. Provavelmente, porque o seu pai foi muitas e muitas mais vezes mais violento que o meu. Não sei o que aconteceu direito porque as notícias complementares ainda virão. Mas me dei, feminista que sou, a pensar em como o desejo e o prazer das mulheres é desde cedo punido, culpabilizado, estraçalhado, transfigurado, eliminado, em último caso. O prazer e tudo o mais que se relaciona a ele. As relações amorosas, os/as filhos desejados ou não, o simples desejo de transar por transar, de mostrar o corpo e se sentir bonita, desejada, etc, etc, etc… Quem sabe apenas a vontade de se sentir segura diante de tantas inseguranças que nos são impostas permanentemente, como formas de dominação e controle. O prazer e o cerceamento dele foram sempre duas experiências vividas de forma concomitantes para a maioria, senão para todas as mulheres.
As instituições todas elas, igreja, família, Estado e para além delas os namoros, as amizades, não estão preparados a permitir e, indo mais além, a estimular todas as nossas possibilidades de vida criativa, construtiva, prazerosa e feliz. Viver com autonomia e ser respeitado/a nas suas escolhas não pode ser incompatível com um projeto de construção democrática no sentido mais amplo: em todos os espaços de convivência nos quais circulamos e atuamos.
No caso de Larissa, considera-se que não houve dolo por parte do pai. Ele não teve o intuito de provocar a sua morte. Eu, diria que ele teve ‘apenas’o intuito de matar o seu desejo, sua vontade de viver com prazer e alegria. Como a vida pode ser vivida sem isso? Como se pode querer que alguém viva sem isso?
Carla Batista
Mestranda do PPGNEIM/ UFBA