Por Redação IHU
“Mesmo que todas as pessoas se qualifiquem, não haveria lugar para todos no mundo do trabalho hoje constituído. Na complexidade e dinamicidade que envolve a produção hoje, onde o capital se reproduz sem necessitar das pessoas, eles continuariam de fora. Portanto, entende-se que a mudança deve se dar no mundo do trabalho, na forma que se produz, no jeito que se organiza o trabalho, e não somente nos que dele foram expulsos. Portanto a qualificação profissional como proposta de qualificar para o mercado, nesta realidade de desempregados, é discurso sem sentido”. A reflexão é da professora e pesquisadora Rita de Cássia Machado.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line, por email, ela analisa as estruturas da base do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) e compreende o movimento como “uma ferramenta de transformação da realidade em que se encontram estes desempregados históricos, portanto, a ferramenta que possibilita a construção real da experiência do trabalho humanizador”. Ela trará essas e outras ideias no debate de hoje, dia 25-11-2010, quando abordará o tema “Os demitidos da vida: reflexões do mundo do trabalho à luz do MTD/RS”. O evento acontece na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, das 17h30min às 19h.
Rita de Cássia Machado formou-se em Filosofia pela Unisinos. Atualmente é professora substituta na Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Departamento de Estudos Especializados na Faculdade de Educação, onde realiza também sua pesquisa de doutorado, na linha de pesquisa Trabalho, Movimentos Sociais e Educação. É também educadora popular nos espaços que se organiza o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais as principais demandas e desafios hoje do Movimento dos Trabalhadores Desempregados do Rio Grande do Sul?
Rita de Cássia Machado – Gostaria de iniciar esta conversa falando sobre a importância do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) para a luta atual da classe trabalhadora, que clama por melhores condições de vida e trabalho. Trabalho, esta é a principal demanda. O Movimento entende que é pelo trabalho que se gera renda, e que é pela renda que se acessam as formas de sobreviver. A Organização tem como bandeira de luta o trabalho emancipador, constituidor da vida humana, da humanização. As experiências do Movimento e a proposta do trabalho ultrapassam a relação da produção, ligam-se com o modelo de sociedade que se busca construir conjuntamente. O trabalho, neste sentido, caracteriza-se como a matriz da formação do ser humano em sua dimensão integral. O trabalho organizado de forma coletiva e cooperada é, para o Movimento, gerador de novos valores, cultura, consciência e relações sociais, além de possibilitar a elevação da qualidade de reprodução material da vida. O trabalho funda a vida humana, assim é ponto de partida do processo de humanização e é princípio educativo.
IHU On-Line – Você pode caracterizar quem são os sujeitos da base do MTD?
Rita de Cássia Machado – É uma realidade brutal. Eu diria que existe no Movimento “uma brutalidade da vida”, mas há também “a resistência dos de baixo”. A realidade é muito dura, é de baixa qualificação profissional; baixa escolaridade ; precariedade no acesso a informações e a políticas públicas; ausência de condições estruturais para gestar e consolidar alternativas de trabalho. Vivem o drama da violência urbana, da falta de infraestrutura básica, como creches públicas para atendimento das crianças de 0 a 6 anos, de escolaridade para os maiores – EJA, da falta de escola pública, de saúde, de saneamento, de casa popular. Os problemas apresentados e trazidos de forma sistematizada pela pesquisa que realizo tratam da própria miséria e da precariedade em que vivem estas pessoas.
Soma-se a isso, ainda, a problemática ambiental vivida pelo conjunto da sociedade, em especial nas periferias. Um grupo muito numeroso do MTD vive no/do lixo literalmente, junto com ele. È importante destacar também que 90% dos integrantes do Movimento são mulheres, negras e analfabetas. Estas desempregadas vivem nas vilas e/ou bairros pobres das periferias urbanas, o que faz com que sejam as últimas pessoas a serem atendidas no tocante às necessidades básicas de sobrevivência humana pelas políticas públicas. Assim podemos constatar que “a nossa realidade é a de cão”, “aqui é assim, tenho a impressão de estar vendo um gato, sabe aqueles gatos de luz, que a gente não sabe onde começa nem onde termina?”, “nossos processos de trabalho são muito precários, não temos nem local para trabalhar, é sempre na casa de uma ou de outra, ninguém trabalha assim”. O que, a partir desta realidade, analisamos ser a experiência do Movimento, ou seja, é a experiência de mostrar que é fundamental elevar as condições básicas de vida das pessoas.
Quanto mais fome, miséria e desemprego, maior a violência, desorganização e desagregação das pessoas. “Você está vendo aquela moça lá, com problema na perna? Pois então, ela nós tiramos da beira da estrada com cinco filhos, onde passava fome e frio. Hoje ela está aqui participando e acessando o mínimo, tem uma casa e conseguimos aposentar ela por problema na perna”; “eu vim para o MTD porque não aguentava mais passar trabalho na vida”; “acho que é um pouco isso a nossa missão, a de transformarmos vidas individuais em vidas coletivas”.
IHU On-Line – Qual é a visão que os membros do Movimento dos Trabalhadores Desempregados têm de mundo do trabalho hoje?
Rita de Cássia Machado – A de que o trabalho é central em suas vidas. Pois estar sem trabalho significa estar demitido de suas próprias vidas. Neste sentido, as experiências de trabalho desenvolvidas pelo MTD são sempre com o foco na geração de trabalho e renda, ou seja, no trabalho como proposta de superação do desemprego histórico, para que as mudanças necessárias sejam estruturais e não apenas soluções imediatistas ou paliativas, como é o caso de bolsas e programas assistenciais, que não vêm acompanhados de propostas estruturais da realidade das pessoas. Porque se entende no Movimento que, mesmo que todas as pessoas se qualifiquem, não haveria lugar para todos no mundo do trabalho hoje constituído.
Na complexidade e dinamicidade que envolve a produção hoje, onde o capital se reproduz sem necessitar das pessoas, eles continuariam de fora. Portanto, entende-se que a mudança deve se dar no mundo do trabalho, na forma que se produz, no jeito que se organiza o trabalho, e não somente nos que dele foram expulsos. Portanto a qualificação profissional como proposta de qualificar para o mercado, nesta realidade de desempregados, é discurso sem sentido.
IHU On-Line – Em que sentido o desemprego pode ser apontado como uma construção social?
Rita de Cássia Machado – No caso do desemprego dos trabalhadores do MTD, a dimensão não é apenas social, mas também histórica. A experiência do Movimento vem no sentido de “desconstruir esta construção”, pois se pretende, com a organização dos trabalhadores desempregados, quebrar o isolamento e o individualismo – um dos principais obstáculos à construção de ação coletiva – e construir cooperações, outra forma de trabalhar, solidariedade, companheirismo, novas relações de produção e poder, partindo de quem vive a experiência do desemprego. Para isso, o MTD cumpre um papel de desconstrutor social desta “construção social do desemprego”. Junto com isso tudo, vem a desconstrução da lógica desta sociedade que deixa de fora boa parte da humanidade. O MTD é compreendido, por mim, como sendo uma ferramenta de transformação da realidade em que se encontram
estes desempregados históricos. Portanto, a ferramenta que possibilita a construção real da experiência do trabalho humanizador.
IHU On-Line – Qual a especificidade do mundo do trabalho no Rio Grande do Sul hoje? Como está no estado a questão do emprego formal e informal?
Rita de Cássia Machado – Segundo a presidenta eleita do Brasil, nestes últimos oito anos foram 15 milhões de empregos criados. No tocante à forma informal que se organiza o trabalho hoje, é quase nada. Por que digo isso e desta forma? Porque temos hoje mais da metade da mão de obra produtiva no Brasil trabalhando de modo informal, precário ou mesmo o “bico”, ou seja, a forma descontínua e precária de trabalho. É importante dizer que mesmo o MTD, entendendo e reconhecendo a importância que é o emprego para as pessoas, luta por trabalho, por teto e por terra, onde possam, a partir destas três dimensões e de outra lógica – em contraposição à lógica da sociedade de consumo – construir novas relações sociais. É importante também destacar que pouco foi feito, em especial nestes últimos quatro anos no estado do Rio Grande do Sul, no tocante às políticas de trabalho e renda para estes desempregados. Eu diria que nada foi feito. O problema do trabalho, e, no caso do MTD, a falta dele, no entendimento do governo do Rio Grande do Sul, não é um problema do estado e sim dos indivíduos.
IHU On-Line – Por que você usa a expressão “demitidos da vida”? Qual o lugar do trabalho na vida dos gaúchos e gaúchas?
Rita de Cássia Machado – Porque não ter acesso às condições materiais de reprodução da vida como comer, beber, dormir, etc., para estes sujeitos, representa estar “demitidos das suas próprias vidas”. Trata-se de desempregados históricos, que nunca tiveram acesso a nenhum processo formal de sobrevivência, isto é, acesso a escola, a trabalho formal, a moradias, a consultas médicas. Neste sentido, se constituem como sujeitos “desterritorializados”. As mulheres e homens da base do Movimento dos Trabalhadores Desempregados não são aqueles trabalhadores que perderam seus empregos na década de 1990 com a reestruturação produtiva, mas são aqueles sujeitos que estão demitidos historicamente. Trata-se dos “esfarrapados do mundo” de Paulo Freire. Neste sentido, o trabalho é central. Foi através do trabalho que o homem e a mulher produziram a sua própria humanização. O trabalho permitiu à humanidade distanciar-se de sua animalidade, desenvolvendo uma série de novas faculdades e capacidades. Toda a história da humanidade consiste nesse processo através do qual o homem e a mulher transformam a sua própria natureza e se humanizam . Por meio do trabalho, a humanidade se diferencia da natureza, mas não rompe com ela. Assim, entendo que, sem o trabalho não há humanização, o que existirá é a desumanização.
(Envolverde/IHU On-Line)