Por Mauro Malin, do Observatório da Imprensa
Estão cobertos de razão, no caso dos documentos da ditadura sobre a atuação política de Dilma Rousseff, os que impugnam liminarmente tudo que foi obtido sob tortura. Ora, como podem os jornalistas construir reportagens com base no que ficou registrado judicialmente após a militante presa ter sido submetida a torturas? O Estado de S.Paulo, na edição de sábado (20/11), abordou o assunto com propriedade. Tanto na reportagem de Tatiana Fávaro como no comentário de Marcelo Godoy, o contexto em que foi produzida a papelada é colocado em relevo. A Folha de S.Paulo e o Globo, entretanto, tomaram ao pé da letra o legado dos esbirros.
Os três jornais, infelizmente, valorizam o fato de que a torturada tenha revelado isso ou aquilo. Cobrar de um torturado que se mantenha em silêncio (isso era chamado “ter bom comportamento”) foi expediente stalinista inaugurado no Brasil pelo PCB.
Muito anos atrás, fiz na França um trabalho universitário sobre a política do Partido Comunista Italiano. Não encontrei, na considerável literatura compulsada, nenhuma “cobrança” em relação a “comportamento” de torturados. Nem na Itália, nem na França, nem em qualquer outro lugar onde agiram a Gestapo e outros organismos de repressão política. Lembro-me de ter comentado várias vezes o assunto com meu amigo Armenio Guedes, veterano dirigente comunista, e ter obtido sempre a mesma resposta: “Depois da guerra, ninguém na Europa se mostrou interessado em discutir quem falou ou não falou sob tortura. Isso não faz sentido.”
Lição para as atuais e futuras gerações
A tortura, escreveu um sobrevivente da Gestapo e de Auschwitz, Jean Améry, “é o mais horrível evento que um ser humano pode reter na memória”. Quando, portanto, jornais transcrevem “revelações” escritas por algozes, descem aos porões enlameados que eram o universo de eleição dos torturadores.
Em relação ao que Dilma Rousseff possa ter feito ou deixado de fazer ao longo de sua militância, remeto a tópico que escrevi em agosto sobre reportagem da revista Época. Chama-se “Revista ignora a anistia”.
O melhor aproveitamento que pode ser dado à documentação sobre Dilma Rousseff é usá-la para denunciar a tortura ‒ ainda em pleno uso contra “presos comuns” ‒ e a repressão política. Essa é a lição que precisa ficar para as atuais e futuras gerações de brasileiros.
(Envolverde/Observatório da Imprensa)