Conceição Freitas – Correio Braziliense
As gêmeas univitelinas Karen e Karina Ferreira Flores, negras, têm a perspectiva de começar uma carreira “em mercados comerciais da Alemanha e da Grécia”, diz Juliana Rife, booker internacional da Mega Model, agência de modelos de Brasília. O que significa possibilidade de trabalho em fotos, catálogos, showroom. Apesar da beleza, da altura (1,77m), do peso (50 kg), dos seios generosos, da boca carnuda, dos olhos oblíquos e de serem muito jovens, talvez elas não consigam chegar facilmente às passarelas. Quem explica a razão é o dono da HAD Models, de São Paulo, a maior agência especializada em modelos negros do Brasil. “Quem promove desfile de passarela acha que negro não veste roupa”, diz Helder Dias, espicaçando o preconceito que ainda persiste no universo fashion.
No ano passado, o Ministério Público de São Paulo forçou a organização do São Paulo Fashion Week a incluir nos desfiles pelo menos 10% de modelos negros, afrodescendentes ou indígenas, mas ficou só nisso. “Os eventos de moda no Brasil não são para os meus modelos negros. Eles não contratam negros e, quando contratam, é sem cachê. Participar ou não participar não muda muita coisa”, diz Helder Dias. É nas campanhas publicitárias que a cor da pele dos brasileiros vem mudando. “O negro passou a ter poder de compra, então o mercado despertou para a inclusão da pele escura”, explica Helder, que comanda 250 modelos negros e negras. “O preconceito não é só racial, é econômico também”, diz o empresário.
Há um complicador a mais para brasileiros e brasileiras afrodescendentes que queiram enfrentar a carreira de modelo — seja de passarela, publicidade ou marketing. Se a pele do candidato ou da candidata puxa para o preto, o funil é mais estreito. “As exigências são muito maiores. Elas têm que ser lindas, ter estilo, corpo muito bom, passarela impecável. As brancas também precisam de tudo isso, mas o rigor não é tão grande”, conta Juliana Rife. Mesmo assim, tem crescido o mercado para modelos afros em Brasília. Para cada 10 brancas, há três negras na agência de Juliana. Até há pouco tempo, a proporção era bem menor, nove para uma. Como as exigências são demasiadas, não é fácil superá-las.
As gêmeas têm conseguido vencer a rigidez do mercado para modelos negros, mas continuam sendo a exceção da exceção. “Mesmo com todos os avanços dos últimos anos, é raro ver um negro trabalhando em shopping, aparecendo na TV. Até aparecem, em número muito inferior ao da realidade racial brasileira”, diz a empresária Maria das Graças Santos, dona do primeiro salão especializado em cabelos étnicos do Distrito Federal, o Afro N’Zinga, que durante muitos anos funcionou no Conic e agora está no Venâncio 2000. “No fim dos anos 1970, começo dos anos 1980, era difícil encontrar alguém que soubesse cortar cabelo black. Encontramos na UnB uma estudante africana que nos ensinou o ponto afro [para trançado de cabelo] e começamos com uma cabeleireira e uma manicure”. Foi um sucesso, mas o Afro N’Zinga não era apenas um salão. “É um negócio, só que até hoje é visto como um movimento”, diz Graça, pioneira no ativismo das questões raciais na capital do país.
Bem depois do surgimento do Afro N’Zinga, surgiu no Centro de Ensino Médio de Taguatinga (CEMTN) um movimento de afirmação da beleza negra que há cinco anos se repete todo novembro, mês de Zumbi. No fim da tarde de sexta-feira passada, o júri oficial escolheu os 12 adolescentes negros (e nem tão negros) mais bonitos entre os cerca de 1,5 mil alunos da escola. Nos dias anteriores, o júri popular havia feito a sua própria escolha.
Os mais belos negros do CEMTN no gosto do júri popular foram, entre as meninas: Sayonara, Ana Alice e Letícia. Entre os meninos: Paulo, Benedito e Hendrix. O júri oficial escolheu Ana Alice, Sayonara e Gileade. E Raniere, Luiz Henrique e João Marcos. Parece exagero, mas a vida desses garotos dentro da escola e na comunidade vai mudar de agora em diante. “A gente percebe que há um aumento da autoestima deles, os outros alunos passam a vê-los de modo diferente e eles se transformam nos gatos e nas gatas da escola. Todo mundo quer namorar com eles depois do concurso [risos]”, conta a professora Elidete Teixeira da Silva, a organizadora.
Quando os alunos de pele alva reclamam da falta de uma promoção para a escolha dos mais belos entre eles, a professora explica que os brancos não precisam de estímulo para se reconhecem bonitos. “Ninguém questiona a beleza-padrão, a loira, a branca. Quem não se sabe belo é o negro. O que queremos é ampliar o conceito de beleza. Não estamos dizendo que o branco é feio, estamos dizendo que o negro é bonito.” O concurso de beleza do CEMTN é uma das atividades pedagógicas do projeto Sankofa, coordenado pela professora Elidete Teixeira. Sankofa é um ideograma africano que significa “nunca é tarde para voltar e pegar o que ficou para trás”.
CONVERSA COM O MINISTRO
Eloi Ferreira de Araújo, da Seppir
“Não são passos na areia
É muito intenso o esforço que tem sido despedido pelo governo para mudar a realidade do negro no Brasil, mas num país com dimensões continentais, mesmo um grande esforço acaba sendo insuficiente. Será preciso um pouco mais de tempo. A demanda histórica é muito grande. Desde 2005, quando o ProUni, foi implementado, conseguimos colocar 700 mil jovens na universidade, e 50% deles são pretos e pardos. Nunca antes neste país tivemos tantos negros na universidade pública, especialmente naquelas que decidiram adotar o sistema de cotas. Mas estamos dando passos largos e consolidados. Não são passos na areia.
Resistência aos avanços
A população brasileira abraçou a política de cotas, o ProUni, a garantia do direito dos quilombolas à terra. A resistência que existe é localizada, quase tem nome e sobrenome. E o partido que resiste [o DEM] não tem nenhum deputado negro, pelo que sei. E só ele entrou na Justiça contra as políticas de acesso à universidade e de regulamentação das áreas quilombolas. O presidente Lula sancionou esse instrumento extraordinário, que é o Estatuto da Igualdade Racial. Quando converso com os que combatiam o texto aprovado, eles ficam surpresos com as conquistas nele asseguradas. ‘Rapaz, é isso?’, eles dizem. Agora só falta a regulamentação para dar concretude à inserção da população negra aos bens econômicos, culturais e sociais.
Vítima de racismo
Há algum tempo, minha mulher me pediu para ir a um mercado próximo de casa, no Rio. Coloquei a bermuda furada, o chinelão, a camisa do Vascão [risos] e fui. Entrei numa fila menor, com minhas poucas compras, e uma senhora quis entrar na minha frente com um carrinho cheio. Disse que alguém havia guardando o lugar dela. Argumentei que eu não havia visto ninguém guardando o lugar. Ela insistiu, e eu também. Como ela viu que não ia conseguir passar na minha frente, largou o carrinho e foi chamar o segurança. O homem chegou e a discussão se repetiu. Ela perguntou para o segurança: ‘Posso entrar?’. Eu reagi: ‘Não pode, nem que tivesse alguém guardando, isso não é certo’. Ela olhou bem pra mim e disse: “Sabe por que eu vou entrar na sua frente? Olha a cor da minha pele e olha a cor da sua”. Nisso, a caixa do supermercado, uma negra de cabelo de trancinha, começou a passar minhas compras. O homem que estava atrás de mim colou nas minhas costas e a senhora ficou falando sozinha.”
Seppir
Criada em 2003, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial é o instrumento mais emblemático do governo federal para a promoção dos direitos da população negra. Ligada ao Palácio do Planalto, é chefiada por um ministro.
Publicação: 21/11/2010 09:56 Atualização: 21/11/2010 09:59
Minha mãe é professora, ela mora em Brasília há mais de 20 anos. Não sei muito do meu pai, ele é um pai ausente, mas para a gente isso é uma coisa insignificante. Na minha infância, estudei na Tia Elza, uma escola particular aqui perto. Depois, estudei em duas escolas públicas no Guará. Continuamos em escola pública até hoje. A gente era muito odiada pelas meninas porque era muito metida, a gente se achava demais. Sempre me achei bonita, mas nunca aceitei a minha cor. Eu sempre falava: ‘Ah, eu deveria ser branca’. Porque na escola a gente era chamada de Chica da Silva, de um monte de apelidos.
Antes de ser modelo, só usávamos calça jeans até o pé, porque a gente morria de vergonha de nossas perninhas fininhas. Depois que a gente virou modelo, quase não usa mais calça, usa muito short, vestido. Eu me achava bonita, mas não gostava da cor da pele, do cabelo e da altura, me achava muito alta. Na escola, a gente era as mais altas. Hoje me acho a mulher mais bonita do mundo. Depois, se a gente não se achar
, quem é que vai achar? Na escola, quando alguém chamava a gente de Chica da Silva, macaca, Pepê e Neném [dupla de cantoras gêmeas cariocas], a gente reagia, gritava, ia à diretoria. A gente não deixava barato, não levava desaforo pra casa. Revidava de todo jeito, só que era pior.
Minha mãe botou na minha cabeça que era pra eu ser médica. E falou o que cada filha dela tinha que ser. E a gente ficou com isso na cabeça, só que depois de uma certa idade, a gente fica ciente do que a gente quer. E quero fazer direito, porque sei que carreira de modelo não é para sempre. As cotas são necessárias, porque vamos ser bem sinceros… se não tiver… os produtores vivem nos falando: ‘Pra uma negra pegar um trabalho, ela precisa ser muito boa. Tem que estar perfeita, muito melhor do que uma branca’. Meus amigos todos falam que as cotas para a universidade são desnecessárias, porque é uma forma de racismo. Pode até ser pra eles, mas só quem é negro sabe o que sofre…
Karina
Não gostava dos apelidos que nos davam e parecia que quanto mais a gente reclamava, mais eles falavam. A gente levava essas brincadeiras muito a sério. Depois que a gente foi crescendo, foi levando mais na brincadeira. Mas nunca dei ousadia pra ninguém me apelidar disso ou daquilo, porque acho isso uma falta de respeito. Nunca gostei, nunca deixei passar sem falar nada. Eu não gostava nem da minha pele nem do meu cabelo cacheadinho. A gente sempre fez escova. A gente começou a fazer alisamento com 5 anos. O bom de a gente começar a ser modelo é que aumentou nossa autoestima, passamos a nos aceitar mais. Até há uns três, quatro anos, a gente não se aceitava muito. Depois, começou a gostar do que tinha.
Sempre digo pra todo mundo que a Karen é a única pessoa no mundo que, se alguém estiver brigando com ela, eu entro no meio pra defendê-la. Não faço isso por mais ninguém, porque eu não gosto de briga. Mas, pela Karen, vou até o fim. Eu já quis ser arquiteta, advogada, hoje eu também quero fazer direito, mas com o intuito de ser juíza. Eu sempre, desde criancinha, gostava de ver seriado de polícia, e sempre tive vontade de acabar com a injustiça, prender os bandidos e tudo mais.
Quando a gente estava com 10 anos, as pessoas falavam: ‘Ah, vocês podem ser modelos’. Por causa disso, começamos a pensar no assunto. Em 2008, participamos de um concurso fajuto. Ganhamos o primeiro lugar, mas não recebemos o que foi prometido. Minha mãe ficou com o pé atrás. A gente recebia recado no Orkut para fazer entrevista em algumas agências, mas a minha mãe não deixava. Até que encontramos uma que achamos que era séria. ‘Mãe, está tudo certinho. Vamos ver no que vai dar’. Foi no começo das férias do ano passado.
O Brasil é um país diversificado. Tem que dar valor a todas as etnias, a todas as raças e não só à raça negra. Já sofri preconceito e tudo mais. E acho que tem que mudar a cabeça dos jovens de hoje em dia para no futuro não acontecer mais isso. Não é por que a pessoa é negra, é japonesa, é índia, que ela é menos importante que uma pessoa branca.
Para ler
Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves, Editora Record, 2006 — Em 952 páginas, a personagem principal, Kehinde, conta a sua história desde que foi retirada de seu reino africano e transportada para o Brasil num navio negreiro. Como pano de fundo, o Brasil escravocrata do século 19. A obra ganhou o prêmio Casa de las Américas 2007.
PALAVRA DE MÃE
Ana Ruth Nogueira Ferreira
“Tenho 42 anos, nasci em São Luís do Maranhão, estou aqui há 24 anos, sou professora da rede pública. Sou parda, meu cabelo é marrom, e digo que sou afrodescendente. Digo aos meus alunos que todos nós viemos de uma senzala e que eu queria muito ver a senzala de onde eu vim. Eu tento resgatar neles o valor do nosso sangue, os nossos antepassados. Sou parda, tenho sangue branco, sangue negro, sangue índio, sou fruto da miscigenação brasileira. O pai das meninas é negro. Cresci ouvindo minha mãe falar: ‘Procura clarear a sua cor’. Isso pesou em mim. Durante muito tempo, só namorei homens brancos. Até que conheci o pai das meninas. Um negro. Engravidei durante o namoro. Fui pra São Luís e contei para os meus pais. Aí a minha mãe falou assim: ‘Por que não foi de fulano?’, que era um branco. ‘As meninas vão sofrer preconceito, vão sofrer isso, vão sofrer aquilo’. Entendi que ela estava querendo proteger as netas, do jeito dela. Com cinco meses de gravidez, terminei o namoro, e meus pais me ajudaram muito. Desde o início, eles amam as netas de paixão. Eles aprenderam que aquela mistura foi uma combinação perfeita, que ficou bonito. Aprenderam a ver a pele negra de uma forma diferente.
Quando elas nasceram eram bem feinhas, porque menino nasce horroroso. Passado um, dois meses, foram ficando bonitinhas. Eu ficava meio chateada por causa do cabelo crespo delas. Quando elas estavam com 5 anos, levei as duas ao salão e falei: ‘Quero fazer algo [um alisamento] que não seja muito prejudicial… algo levinho… só pra dar uma abaixadinha’. Fui muito criticada, mas eu sempre ensinei a elas a cuidarem da beleza. Eu sabia que elas eram lindas e eu queria realçar isso nelas.
Aos 4 anos, elas foram para uma escola particular. Eram as únicas negras e elas estranharam isso. Não queriam mais voltar. Mas a gente ia conversando e elas também se resolviam entre si. Eu também ficava muito chateada [com o preconceito racial contra as filhas]. Ia à escola, conversava com a professora. A gente sempre trabalhou em parceria. Nunca deixei quieto. Nem na minha sala de aula deixo isso acontecer.
Elas nasceram para brilhar, elas vão ser alguém, de um jeito ou de outro. Porque são muito inteligentes. Essa história de modelo atrapalhou um pouco a escola, porque elas sempre foram muito boas alunas. Eu não queria que elas fossem modelos. Via que eram bonitas, que tinham o perfil, via tudo, mas eu não queria porque iria atrapalhar o plano que eu tinha. Eu tinha um plano A, queria que uma fizesse medicina e a outra, direito. Eu sei que elas vão fazer o que quiserem, mas vou incentivando que é pra elas saberem que têm que ser alguém. Elas pediram para eu levá-las à agência, levei, mas não por minha vontade. Na hora em que elas botaram o pé na agência, alguém disse assim: ‘Achei a negra pra desfilar’. Porque estavam precisando, o mercado precisa de modelo negra. Parece que a pessoa negra não acredita que tenha um potencial e não vai atrás do sonho.”