Margareth Arilha
Não há dúvidas de que o direito ao aborto e ao uso da esterilização feminina pelas brasileiras foram temas centrais para a problematização dos direitos reprodutivos. A Constituição de 1988 foi marco central nesta trajetória, reconhecendo que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a b rasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. O parágrafo 7o do Art 226 da Constituição estabelece, “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, que o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos (…) ao livre exercício deste direito, sendo vedada qualquer forma coercitiva.” Para responder a esse parágrafo da Carta, instituiu-se a Lei de Planejamento Familiar, no 9263/96.
Nos anos 80, há uma história concomitante ao processo constituinte que vale recuperar: após forte presença do movimento feminista, que saiu em busca da autonomia no campo da sexualidade e da reprodução, outros passos começaram a se desenhar. Profissionais de saúde, gestores, parlamentares, pesquisadores, operadores do Direito, mídia e opinião pública foram ́convocados ́ a se posicionar. A primeira estratégia foi concretizar o aborto como ação de saúde em casos já previstos em lei: se a gravidez fosse fruto de violência ou colocasse em risco a vida da mulher.
Desenhou-se experiência pioneira em São Paulo, no Hospital Jabaquara, na gestão da ex- prefeita Luiza Erundina. Contudo, foi apenas no processo pós Cairo que, um segundo passo igualmente importante ocorreu: o processo político que coordenamos e desenvolvemos em 1997, na Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher, que aprovou, em 6/11/97, a Resolução 258/97, do Conselho Nacional de Saúde, exigindo que o Ministério da Saúde normatizasse e regulamentasse o atendimento ao aborto legal no SUS. A resolução foi aprovada após difícil embate com a CNBB no conselho, à época representada por Dra Zilda Arns, e, para tanto, foram construídas alianças com atores políticos como o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, e apoio de parlamentares como o falecido José Aristodemo Pinotti e a senadora eleita Marta Suplicy.
A resolução criou a obrigatoriedade da oferta do aborto legal pelo SUS, respondida na gestão do então ministro da Saúde, Jose Serra, com produção de norma técnica sobre Violência Sexual.
Outros documentos feitos para gestores foram a Norma Técnica de Atenção Humanizada a Abortamento e a reedição da Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, cuja principal mudança é a não exigência da apresentação de Boletim de Ocorrência (B.O.) policial por vítimas de estupro para realização do aborto legal. A Lei Maria da Penha Maia, de 2006, além da alta relevância na prevenção e combate às violências, tem o mérito de tornar legal, indiretamente, a norma que desobriga do B.O. Vários serviços foram criados no País, embora ainda demandem apoio do Ministério da Saúde e de secretarias estaduais e municipais para seu desenvolvimento. Este proc esso, mais do que objetivado no País, recebe sistematicamente investidas de grupos conservadores que tentam, com projetos de lei, derrubar o que já é consolidado, fato que volta a fazer-se presente agora, na campanha eleitoral, acenando para os candidatos com sua força de pressão.
É portanto necessário relembrar aos candidatos à Presidência que o Brasil quer crescer e avançar, que o Brasil pode mais, inclusive em direitos sexuais e reprodutivos. Do mesmo modo que outros programas são citados na campanha, e há enorme preocupação com sua manutenção (Luz para Todos, PAC), movimentos de mulheres, profissionais de saúde, pesquisadores e lideranças de diferentes partidos dão hoje sustentação política a um processo de avanços na política integral de saúde das mulheres e não admitiriam retrocessos. Embora os programas MÃE Brasileira ou Rede Cegonha possam ajudar a resolver mortalidades materna e neonatal, o Brasil acumula conhecimento técnico, programático e político para exigir muito mais às mulheres, cujos votos são hoje tão disputados. Falta arrojo aos candidatos e compromisso para propor e atender à saúde integral da mulher em todas as fases da vida.
As mulheres não devem ser vistas só como mães que desejam filhos, mas como cidadãs que às vezes querem ter filhos e às vezes não querem ou não podem ter filhos, que possuem necessidades ou problemas associados à saúde sexual e reprodutiva, e que precisam da educação sexual, do acesso à contracepção, do direito ao aborto legal, sem violências e torturas. Parte do governo Lula tentou promover tais ações e ser mais contundente, mas foi calada em nome de uma aproximação com a Igreja Católica que agora lhe coloca em xeque: debate e ação em torno do aborto foram reprimidos e, agora, custam caro ao PT. Por sua vez, o PSDB também não pode esquecer de seu papel ativo no avanço dessa agenda.
Em síntese, este é o momento de dizer em alto e bom tom: nós queremos mais, nós exigimos mais, num Estado que possa ser laico e preservar avanços já consolidados pelo Brasil, em consonância com normativas internacionais. Não queremos um País presidido de joelhos para as lideranças religiosas e que imponha retrocessos a uma agenda já concretizada. O Brasil quer sua cidadania sexual e reprodutiva, e que os direitos humanos de cidadãs e cidadãos sejam respeitados, inclusive para promover desenvolvimento e sustentabilidade a uma agenda social, política e econômica que não dissocie vida produtiva e reprodutiva. Caminhando rumo à Cairo+20, em 2014, e o que se espera é que o Brasil tenha o que apresentar às nações do planeta, em cumprimento aos direitos reprodutivos de sua população.
Margareth Arilha, pesquisadora do NEPO/UNICAMP e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR)