Leonardo Sakamoto
A discussão sobre o direito ao aborto, que ganhou destaque na cobertura da campanha presidencial, me fez lembrar da última pesquisa Datafolha sobre o tema: 68% dos brasileiros era contra mudanças na lei que regulamenta a interrupção da gravidez (permitida hoje em casos de estupro ou de risco de vida para a mãe), 14% achavam que ela deveria ser permitida em mais situações e 11% defendiam a sua descriminalização total. Os dados são de 2008. No ano anterior, o total dos que eram favoráveis a deixar tudo como está (talvez a mais brasileira das características) era 65% e, em 2006, 63%. O total de 68% era idêntico para homens e mulheres.
Os direitos humanos são um dos temas que mostram convergência entre alguns setores do PSDB e do PT. Em ambas as agremiações, houve quem defendeu o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado em dezembro passado e que sofreu pesadas críticas se setores da sociedade como a igreja, os militares e o agronegócio. Os responsáveis pela área de direitos humanos do governo FHC, como o professor Paulo Sérgio Pinheiro, foram mais enfáticos na defesa do atual ocupante da cadeira, o ministro Paulo Vannuchi, do que muitas pessoas do próprio governo Lula durante a polêmica do PNDH.
Da mesma forma que há também, em ambos os lados, aqueles que cuspiram no PNDH com vontade. No Congresso Nacional do PT, venceu o apoio ao programa. Se essa decisão não tivesse sido tomada com a participação da base do partido, ou seja, fosse restrita aos corredores palacianos, talvez a opção teria sido outra. Pois os mesmos que estão fazendo com que a campanha da candidata do PT volte atrás em sua posição progressista sobre o direito ao aborto, provavelmente teriam tornado o PNDH insípido, inodoro e incolor já em seu lançamento.
Não estou dizendo que os partidos são iguais, longe disso. Apenas que há temas que encontram ressonância em ambos os lados e que direitos humanos é um deles – por exemplo, o próprio PNDH manteve pontos, que hoje são considerados polêmicos, da sua primeira versão, lançada em 1996, sob o PSDB.
Em ambos os partidos, há muitos contrários à adoção da pena de morte, à redução da maioridade penal e à prisão perpétua, e favoráveis à eutanásia, à ampliação dos direitos reprodutivos, à união civil homossexual, à adoção de filhos por casais do mesmo sexo, à descriminalização do uso de drogas. Seja por anseio de igualdade, seja pela defesa do liberalismo.
Mas, da mesma forma que a pesquisa acima apontou a posição da sociedade sobre o aborto, a população segue contrária à maioria desses pontos. Por isso, as campanhas presidenciais vão fugir de polêmicas feito o diabo foge da cruz.
Não acredito que Dilma e Serra, na solidão de suas crenças pessoais, não concordem com muitos desses pontos acima. Ou, mesmo que discordem de alguns, não creio que entendam que a garantia de determinados direitos de minorias não é uma questão de opinião individual, mas sim de política pública. O próprio Lula já declarou que não importa que ele seja pessoalmente contra o aborto, mas sim que o tema tem que ser tratado como saúde pública, uma vez que mulheres pobres morrem por causa de interrupções de gravidez feitas de forma precária. Do outro lado, Fernando Henrique defende a descriminalização de drogas como parte do combate ao problema.
Vamos imaginar uma situação hipotética: considerando que há apenas dois partidos no segundo turno, nada impediria que ambos fechassem posição sobre alguns desses temas, comprometendo-se a implantar uma plataforma mínima para que o país desse um salto no respeito aos direitos humanos, caso eleitos. Sobraria tempo para debater outros assuntos relevantes.
Qual a consequência para suas campanhas? Perderiam apoio dos aliados mais conservadores? Considerando a qualidade de quem está do lado deles, isso seria uma benção, não um problema. Perderiam eleitores que já votaram neles e afugentariam alguns de Marina Silva? A perda seria para ambos. Seriam abandonados por parte de seus correligionários? Duvido. A busca pelo poder move montanhas. Afinal, ser uma democracia de verdade passa por atender aos anseios da maioria, mas não pode se furtar a proteger a dignidade da minoria.
Isso, é claro, está no plano da utopia, e soa a idiotice, porque a política real, cheia de traições e puxadas de tapete, não permitiria isso. Além do mais, a guerra campal e a baixaria já estão instaladas. Por muitos, a porrada foi a opção escolhida – tem até denúncia de criança apanhando de coleguinhas na escola porque o pai votou em uma pessoa diferente dos outros pais… Ou seja, diálogo não é uma opção, pelo menos não no estágio em que nos encontramos.
Com isso, o tema vai continuar marginal, usado como munição. (Suspiro) É duro discutir direitos humanos em um país que tem vergonha de direitos humanos.
fonte: Blog do Sakamoto