Raquel Júnia *
Adital – “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, diz o parágrafo único do artigo 1º da Constituição brasileira. São justamente alguns desses representantes que a população escolherá no próximo dia 3 de outubro. O sistema eleitoral brasileiro compreende duas formas de eleição – uma majoritária, no caso do presidente, governadores e senadores, e outra proporcional, no caso dos deputados federais e estaduais. Na eleição majoritária, vence o candidato que obtiver a maior parte dos votos. Já na eleição proporcional, o cálculo é mais complexo. No próximo domingo, a população brasileira poderá eleger 513 deputados federais, quantidade definida pela Lei Complementar 78, de 1993. E é importante conhecer as regras – e as contas – desse processo.
O número de deputados de cada estado na Câmara Federal varia de acordo com a população local – no mínimo oito e no máximo 70 representantes. Já com relação às Assembléias Legislativas estaduais, o cálculo pode ser feito de duas maneiras. A primeira delas inclui os estados com menos de 12 representantes na Câmara federal. Nesses casos, para se chegar à quantidade de cadeiras na Assembleia Legislativa, esse número é multiplicado por três, chegando-se ao total de 36 parlamentares. A segunda forma de se definir o número de deputados estaduais é feita no caso dos estados com mais de 12 representantes na Câmara: o total sempre será de 36 somados à quantidade que excede os 12. Por exemplo, no estado de São Paulo, que é o que elege mais deputados federais -70 representantes-, a Assembleia legislativa é composta por 36 deputados estaduais somados a 58 (quantidade que excede os 12 deputados), resultando num total de 94 cadeiras.
Pelo sistema proporcional, não basta ser um deputado bem votado para ser eleito. A conta, que envolve outras variáveis, funciona assim: primeiro se identifica o quociente eleitoral daquela eleição específica, que é obtido pela divisão do número de votos válidos pela quantidade de vagas a serem preenchidas. Depois, calcula-se o quociente partidário, que é o que permitirá saber quantos representantes cada partido ou coligação poderá eleger. O quociente partidário é o resultado do número de votos obtidos pelo partido ou coligação, dividido pelo quociente eleitoral. Então, pelo sistema proporcional, quanto maior o número de votos do partido ou coligação, mais deputados desses grupos serão eleitos. Isso explica por que deputados pouco votados são eleitos, quando deputados bem votados de outro partido ou coligação ficam de fora. Quando a votação da coligação ou partido é alta, é possível eleger vários deputados, mesmo que, individualmente, eles tenham recebido muito menos votos do que deputados de outros partidos ou coligações.
Para o professor de teoria política da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Nelson Coutinho, o sistema de representação proporcional garante a representação de partidos menores. “O quociente eleitoral é a única maneira de os partidos que obtêm o mínimo de votos necessários terem representação, e permite também que se excluam da representação partidos que tenham cinco votos, dez votos. Isso ressalta a importância do partido político. E uma democracia que funcione corretamente tem que se basear na dialética dos partidos políticos”, opina.
Outro professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, Mauro Iasi também acredita que o problema não está no sistema eleitoral. Para ele, a injustiça está no fato de a disputa eleitoral ocorrer em condições desiguais. “O sistema eleitoral pressupõe uma forma de disputa eleitoral no Brasil em que os candidatos pertençam a partidos que tenham uma certa coerência interna, que supostamente deveriam representar as diferentes opiniões e perspectivas presentes na sociedade. Dessa forma, ter-se-ia uma disputa entre grandes projetos nos postos majoritários e a representação proporcional de todas a posições políticas da sociedade nas câmaras representativas. Mas esse sistema acaba falhando em duas pontas bastante nítidas: a inconsistência partidária e o poder econômico”, avalia. Ele pontua que o poder econômico interfere diretamente na disputa eleitoral, que acaba sendo focada em personalidades e não em projetos de sociedade. Na avaliação de Iasi, a legislação é muito restritiva aos partidos pequenos, com aspectos que ele considera, inclusive, ilegais, como o tempo de campanha, que é definido a partir da representação política já existente. “O erro aí é de lógica. Antes de tudo, não se pode pautar uma disputa que irá definir a correlação de forças futura, numa correlação de forças passada”.
Mas um dos problemas principais, segundo ara Iasi, é que os partidos perderam a coerência e os programas. “O que os partidos defendem de fato politicamente foi substituído por um pragmatismo político que acaba formando coalizões de governo e de oposição muito mais ao sabor de conveniências políticas imediatas do que guardando coerências com cartas programáticas, princípios, programas, etc. Os grandes partidos brasileiros acabam sendo na verdade agremiações que se especializaram numa disputa eleitoral, dentro das regras que acabam se estabelecendo muito mais como mercadológicas do que políticas”.
Multi ou bipartidarismo
No Brasil, hoje, há 27 partidos políticos reconhecidos pelo TSE. Para Carlos Nelson, não há problema no fato de o Brasil ter tantos partidos políticos. “A própria prática eleitoral decide qual partido conta e qual não conta. O direito de livre organização deve ser respeitado. Às vezes, um ‘partidinho’ pequeno pode se tornar um partido importante se suas propostas forem aceitas pelo eleitorado”, considera. Entretanto, de acordo com ele, é preciso haver uma mudança nos partidos. “Eles precisam ser realmente programáticos, ter programas orgânicos para a sociedade brasileira, programas alternativos. É importante que se saiba que votar em um partido é diferente de votar em outro”.
O professor lembra o segundo turno da eleição de 1989, quando, para ele, ficava bem claro que havia uma discussão de modelos de sociedade apresentados por Collor e Lula. Na avaliação de Carlos Nelson, atualmente não existe essa diferença. “O Brasil, hoje, tende a ter um sistema bipartidário. De um lado, o PT e seus vários coligados e, de outro lado, o PSDB e seus vários coligados. Eu brinco dizendo que no Brasil nós estamos passando por um processo de ‘americanalhamento’ da política, ou seja, a política brasileira está ficando parecida com a dos Estados Unidos: dois candidatos de dois partidos, mas que na verdade pouco divergem entre si”.
Para Mauro Iasi, a inconsistência partidária no país tem raízes históricas, desde o tempo do Brasil Colônia, quando as organizações políticas conservadoras e liberais se alternavam no poder sem que houvesse grandes diferenças entre as concepções de um e outro grupo. Ele explica que mesmo a organização do Partido Republicano Brasileiro acabou sendo a expressão muito mais de interesses oligárquicos regionais do que de uma ideia republicana. Para o professor, a ditadura militar que foi iniciada na décad
a de 1960 fortaleceu esse contexto ao apostar no caminho, já mencionado por Carlos Nelson, do ‘americanismo’, com dois grandes partidos, um de situação e outro de oposição que, na época da ditadura, eram a Arena e o MDB. Iasi ressalta, entretanto, que, ao mesmo tempo em que esse bipartidarismo fez com que se esvaziassem profundamente a diversidade e a possibilidade de expressão política, possibilitou um início de reorganização da disputa pelo poder, a partir dos anos 1970. “Num breve período isso permitiu, colado com a dinâmica das classes sociais e das lutas, expressões políticas que foram assumindo feições programáticas. E por um pequeno período, no fim da ditadura e na redemocratização, houve uma mudança no quadro partidário que apontava para isso. Infelizmente esse processo não culminou com profundas alterações, inclusive, na estrutura política”.
Mudanças
Todo este esquema, segundo Iasi, reproduz uma elite política, que isola a maioria da população e reduz o seu papel a apenas votar. Para ele, a melhor forma de reverter este quadro é tentar aproximar as discussões políticas daqueles a quem mais elas interessam. “Fazer câmaras representativas locais, em que as classes sociais, seus representantes, aqueles que estão diretamente ligados aos movimentos, às representações profissionais, aos sindicatos pudessem ter uma voz para poder nas decisões da grande política ser ouvidos em relação aos seus interesses”, propõe. E, além disso, que haja a proibição do financiamento privado de campanhas públicas. “Com a legalização do suborno, como há hoje, a doação de cerca de R$ 300 milhões em uma campanha impede qualquer outro partido que queira apresentar uma proposta à população brasileira de ter o mínimo de condições de igualdade para fazer a disputa”.
Além de concordar sobre a importância do financiamento público de campanha, Carlos Nelson considera que é necessário refletir sobre outras propostas para uma reforma eleitoral, como o voto em lista e não em um candidato específico. “Dessa forma, em vez de se votar em um candidato, pode se escolher votar no partido. A ordem da lista é definida na convenção do partido. E, caso o partido faça um quociente para eleger três deputados, por exemplo, nesse modelo seriam eleitos os três primeiros da lista”.
O pesquisador considera, entretanto, que essas mudanças não garantirão por si só a solução dos problemas políticos brasileiros. “Essas medidas de reforma política são importantes, é bom que as discutamos, mas tem se atribuído a elas uma dimensão exagerada. O problema político no Brasil se resolve muito mais pela organização da sociedade civil, pela ampla participação popular. O problema político central do Brasil é a reformulação geral da própria política brasileira, que deve deixar de ser pequena política e passar a ser uma discussão das grandes alternativas da sociedade brasileira. É preciso se debater grandes questões nacionais e não ficar se limitando a discutir se o sigilo bancário foi rompido ou não, ou se o filho da ministra fez lobby ou não fez”.
* Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz